Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 01, 2006

Dicionário de falcatruas

VEJA


João Gabriel de Lima e Ronaldo Soares


Em maio de 2005, VEJA divulgou o vídeo em que Maurício Marinho, diretor dos Correios, é flagrado recebendo propina: marco zero da CPI

Na semana passada, encerraram-se os trabalhos de investigação da CPI dos Correios, aberta depois da publicação da reportagem de VEJA que, em maio de 2005, revelou o vídeo do funcionário Maurício Marinho recebendo uma propina de 3 000 reais. A epígrafe do relatório elaborado pelo deputado Osmar Serraglio é uma frase de Jesus Cristo tirada do Evangelho segundo Mateus: "Não tenhais medo dos homens, que nada há de encoberto que não venha a ser revelado, e nada há de escondido que não venha a ser conhecido". Ao revelarem o que estava encoberto, os parlamentares produziram uma espécie de inventário de novas e de antigas maracutaias. Das quase 1 900 páginas do texto é possível pinçar verbetes para um "dicionário de falcatruas". Quando as formas de corrupção que estavam escondidas se tornam conhecidas, fica mais fácil combatê-las – e é com esse espírito que o calhamaço da CPI deve ser lido e analisado.

 

CAPÍTULO 1
CORREIOS

Simulação de concorrência – O relatório da CPI apontou indícios de simulação de concorrência entre as empresas Skymaster e Brazilian Express Transportes Aéreos, a Beta. Em sucessivas disputas pelo transporte noturno dos Correios, as duas companhias faziam um acordo prévio e jogavam o preço para cima. A que vencesse subcontratava a perdedora. De acordo com cálculo dos parlamentares, esse esquema causou um prejuízo de 100 milhões de reais aos cofres públicos entre julho de 2000 e abril de 2005 – são contratos que começaram antes da era Lula e foram renovados no governo petista.

Revisões posteriores de contratos – Dada a falta de expertise dos Correios na área de informática, vários dos contratos com empresas prestadoras de serviços eram reajustados, com prejuízo para a estatal. Um exemplo: os Correios compraram, sem licitação, um software da empresa Peoplesoft para complementar um projeto de informática. A CPI descobriu que a Peoplesoft havia cobrado da estatal, por um programa similar, um preço dez vezes maior do que o pedido à multinacional AGCO e 38 vezes maior do que o pedido ao Citibank. Só essa operação causou um prejuízo de 19 milhões de reais aos cofres públicos. Há várias outras semelhantes no relatório da CPI.

 

CAPÍTULO 2
VALERIODUTO

Licitação fraudada – Para contratar a SMPB, agência de publicidade de Marcos Valério, a Secretaria de Comunicação, comandada por Luiz Gushiken, mudou o critério de licitações. Baixou-se a exigência de patrimônio mínimo para que a empresa pudesse concorrer – ela prestaria serviços para os Correios. A SMPB ganhou uma concorrência na qual a agência que prestava serviço anteriormente, a Giacometti, nem se classificou para a fase final. Detalhe: os serviços da Giacometti haviam sido bem avaliados anteriormente pelos próprios Correios. De acordo com o depoimento de Fernanda Karina Somaggio, secretária de Marcos Valério, o champanhe para comemorar a vitória foi comprado na véspera de o resultado da concorrência ser divulgado.

Tráfico de influência – Essa falcatrua sempre existiu no serviço público, mas com Marcos Valério atingiu um novo patamar. Além de intermediar operações nebulosas entre bancos e o governo, ele assinava notas promissórias como avalista. Isso já se sabia – mas o relatório da CPI detalha como Valério agia como se fosse um integrante do governo, chegando, entre outras coisas, a pedir emprego no banco BMG para Maria Ângela Saragoça, ex-mulher do ex-ministro José Dirceu.

"Empréstimos" que não eram empréstimos – O relatório da CPI usa essa palavra – "empréstimo" – entre aspas. De acordo com os deputados, trata-se de um eufemismo para sacar dinheiro do valerioduto. Analisando os "empréstimos" caso a caso, a CPI mostra que se trata de aberrações do ponto de vista financeiro. A maior parte deles não tinha garantias suficientes, as renovações eram simultâneas e aconteciam antes do vencimento, e seus avalistas – em geral José Genoíno, Delúbio Soares e o próprio Valério – não tinham patrimônio suficiente para tanto. Por incrível que pareça, o Banco Central não se deu conta dessas operações.

Troca de favores com os bancos – Os dois bancos do valerioduto, o BMG e o Rural, receberam polpudos favores em troca dos "empréstimos" concedidos sem garantia. Segundo a CPI, o Banco Rural teve avaliações favoráveis no Banco Central possivelmente intermediadas pelo procurador da Fazenda Glênio Guedes, cujo pai, Ramon Guedes, recebeu 1,1 milhão de reais de uma empresa de Marcos Valério. Houve ainda um aumento significativo de depósitos de fundos de pensão no banco. O BMG recebeu também um naco desses depósitos e foi favorecido com a carteira de crédito consignado dos aposentados do INSS, em detrimento de outras dezessete instituições financeiras.

Adiantamentos suspeitos – A administradora da rede de cartões Visa, que tem o Banco do Brasil como um dos principais acionistas, está entre os catorze maiores depositantes das contas de Marcos Valério (92 milhões de reais). Dona da conta da Visanet, a agência de propaganda DNA, de Valério, recebia antecipações de recursos para campanhas publicitárias a partir do Fundo Visanet, do qual o Banco do Brasil é um dos gestores. Com os adiantamentos – prática que só passou a vigorar a partir de 2003 –, Valério usava o dinheiro como garantia para obter empréstimos no Banco do Brasil e no BMG. A CPI calcula que, só em antecipações irregulares de recursos feitas para a DNA, Valério tenha lucrado 23,9 milhões de reais em aplicações financeiras.

Superfaturamento – Ladroagem que aparece em vários lugares do relatório. Um exemplo: para fabricar 10.000 fôlderes para o Fórum Social Mundial de 2005, a agência SMPB de Marcos Valério declarou um preço 40,89% superior ao praticado pelo mercado, de acordo com pesquisa feita pelos deputados da CPI. Ou seja, rouba-se onde dá – até em fôlderes.

 

CAPÍTULO 3
FUNDOS DE PENSÃO

Maracutaias em fundos de pensão – Além de capitalizarem os bancos "amigos", as entidades de previdência complementar vinculadas a estatais, que movimentam recursos da ordem de 300 bilhões de reais, continuaram sendo um dos alvos preferenciais de espertalhões (tanto do governo quanto de fora dele). Nas operações do mercado financeiro, a lógica era a seguinte: corretoras em geral ligadas a doleiros ganhavam e os fundos de pensão perdiam. O dinheiro dos fundos de pensão ia quase sempre para as mesmas corretoras. Um dos casos relatados foi o da Prece, fundo de pensão da Cedae, do governo do Rio de Janeiro. A entidade registrou o maior volume de perdas com títulos públicos de 2000 a 2005 (35,4 milhões de reais). Como? A CPI constatou que os preços de títulos negociados à Prece eram diferentes dos praticados pelo mercado. Por exemplo, numa operação em setembro de 2002, uma corretora adquiriu lote de 2.500 títulos a 1.313,68 reais a unidade, repassando a outra corretora quase pelo mesmo preço – 1.313,83 reais. Na hora de negociar com a Prece, o preço unitário do papel foi de 1.397,49 reais, gerando rendimento diário de 6,4% para a corretora (patamar exagerado para os padrões do mercado) e perda de 209.500 reais para a Prece.

 

CAPÍTULO 4
SEGUROS

Golpe do seguro – O pagamento irregular de um seguro resultou em prejuízo de quase 15 milhões de reais ao Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), entidade de economia mista controlada pela União. Essa dinheirama foi torrada para cobrir o incêndio na Companhia Fiação e Tecidos Guaratinguetá, ocorrido em 5 de dezembro de 2003, quando a apólice do contrato com a seguradora já estava vencida. Inexplicavelmente, a direção do IRB aceitou apólice emitida em 29 de setembro de 2004, retroativa à data do sinistro, cobrindo os prejuízos da empresa. A operação, autorizada pela diretoria do IRB, não passou pela consultoria jurídica do órgão, como é praxe nesses casos. Resultado: uma salgada conta de 14,8 milhões de reais para os cofres públicos.

Ação entre amigos – A CPI constatou o favorecimento de corretoras escolhidas pelo IRB para atuar no bilionário ramo de resseguros facultativos no exterior, ou seja, parcerias com empresas similares estrangeiras. Nesse caso, não ficou caracterizado prejuízo aos cofres públicos, mas demonstrou-se que o IRB privilegiou determinadas empresas. Tanto Furnas quanto a Infraero indicaram ao IRB a mesma corretora – a Assurê – para ficar com o excedente de seus resseguros no exterior. Detalhe: a carta recomendando a empresa foi enviada antes mesmo de a corretora internacional da qual ela é representante ser credenciada pelo IRB. Além disso, a CPI constatou favorecimento da direção do IRB a corretoras em facultativos da Petrobras e de empresas aéreas.

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