Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 29, 2006

VEJA Entrevista: Renato Mezan


"Freud é um vencedor"

Não, ele não morreu, muito pelo contrário.
Continua presente em toda a psicologia
e também na cultura. É o que diz o maior
especialista brasileiro na obra do pai
da psicanálise


João Gabriel de Lima

 

Antonio Milena

"Harry Potter é uma história popular dos dias de hoje em que está ilustrada a problemática explorada pela psicanálise"

O psicanalista Renato Mezan é o maior estudioso brasileiro da obra do austríaco Sigmund Freud. Alguns de seus livros, como Freud, Pensador da Cultura – que acaba de ser reeditado –, são referência internacional nos trabalhos acadêmicos sobre o pai da psicanálise. Os caminhos de Mezan e Freud se cruzaram quando o brasileiro havia acabado de se formar em filosofia, em meados dos anos 70, e procurava um assunto para sua dissertação de mestrado. Escolheu a obra de Freud – e nunca mais conseguiu sair do labirinto intelectual freudiano. Tanto que se tornou, ele próprio, psicanalista. Ao longo do século XX, a obra de Freud sofreu questionamentos de toda espécie. Nesta entrevista a VEJA, em seu consultório em São Paulo, Mezan fala do legado do austríaco no ano em que se comemora o sesquicentenário de seu nascimento. "Todas as correntes da psicologia foram marcadas por suas idéias", diz ele.  

Veja – O que sobrou de Freud 150 anos depois?
Mezan – Ele é um vencedor. Em primeiro lugar, todas as correntes da psicologia foram marcadas por suas idéias. Aí se inclui a psiquiatria, que passou a tentar entender as razões e as conseqüências dos transtornos mentais, em vez de apenas receitar remédios que aliviam os sintomas. Para além de sua área específica, a influência de Freud também é grande. A idéia de inconsciente já existia antes dele, mas Freud a transformou em um instrumento de intervenção na mente humana. A aplicação desse instrumento mudou a relação do ser humano consigo mesmo, influenciou os relacionamentos, alterou a forma de educar as crianças e, alavancada pelo cinema e pela literatura, marcou decisivamente o imaginário do século XX.  

Veja – Em que áreas a influência de Freud sobre a cultura é mais visível?
Mezan – Inúmeros livros, filmes e peças fazem referência direta à psicanálise. A obra do cineasta americano Woody Allen é o exemplo mais evidente. Mas é na literatura de ficção que essa presença se faz sentir de maneira mais forte, nem sempre de forma explícita – no interesse pela interioridade do personagem e pelas forças que escapam à sua consciência na determinação de suas ações. O romance psicológico, característico do século XX, só existe por causa do pai da psicanálise. Não conheço suficientemente a biografia do irlandês James Joyce, autor de Ulisses, para saber se ele leu Freud, mas a influência está clara em sua obra. Outro exemplo, também na arte do século XX, é a escola pictórica surrealista, cujas imagens podem ser relacionadas a fantasias inconscientes. Na cultura pop, podemos citar todos os livros da série Harry Potter – os romances trazem a luta do bem contra o mal, e o mal é encarnado no homem que matou os pais do protagonista. Uma das cenas mais tocantes do primeiro volume é quando ele descobre no castelo um espelho, que é o espelho de ojesed, "desejo" ao contrário. O espelho mostra aquilo que ele mais quer, e o que ele mais quer é ser amado pelos pais. É uma história popular dos dias de hoje em que está ilustrada a problemática explorada pela psicanálise.  

Veja – Freud é importante para a cultura ocidental. Até que ponto sua obra influenciou quem não pertence a ela?
Mezan – O inconsciente existe em toda parte. Há estudos que mostram que existe o complexo de Édipo até nas sociedades primitivas. De acordo com esses estudos, o importante não é a figura concreta do pai, mas aquilo que ocupa a posição paterna – seja o tio, a matriarca ou um totem. No Oriente, a psicanálise se adaptou a culturas como a da Índia e a do Japão. Nos japoneses, o sentimento de vergonha, devido à cultura aristocrática, é muito intenso, e existem casos de pacientes que têm enorme dificuldade em falar sobre a própria sexualidade com medo de ofender a sensibilidade do analista. Mesmo assim a psicanálise encontrou terreno fértil por lá. Nos países islâmicos é mais complicado, não porque os muçulmanos não tenham inconsciente. O fato é que um xiita em crise dificilmente procuraria um analista. É mais provável que ele procurasse um líder religioso.  

Veja – A psicanálise é criticada freqüentemente por não oferecer uma "cura" para as aflições psíquicas. Como vê essa questão?
Mezan – Freud era médico. Ele freqüentemente chamava as pessoas que atendia de "o doente", e ocasionalmente aparecem termos como "cura". O que acontece é que, ao longo de suas pesquisas, Freud foi percebendo que a diminuição do sofrimento psíquico envolvia um tipo de tratamento diferente daquele que se aplica a outras áreas da medicina. Essas "doenças" afetam a subjetividade do indivíduo, e isso significa que o trabalho sobre esse problema, do ponto de vista psicanalítico, não pode prescindir da colaboração e participação ativas desse indivíduo. Então, o que Freud percebe é que a psicanálise, talvez mais que uma cura, almeja e proporciona uma experiência de si, sem nenhum sentido místico nisso. No mundo de hoje, quando vivemos a época da cultura de massa, a psicanálise faz parte daquelas atividades nas quais o trabalho artesanal, de ourivesaria, lento, cuidadoso, ainda é necessário. A subjetividade humana é complicada demais para ser manipulada sem cuidado. Qual paralelo poderíamos fazer? Talvez com a educação musical, em que o entusiasmo e o envolvimento do aluno são essenciais para a aprendizagem.  

Veja – Várias correntes da psicologia, principalmente as da linha cognitivo-comportamental, têm prosperado porque oferecem uma solução mais rápida para os transtornos da alma.
Mezan – Eu acho que existe espaço para todas, ou quase todas. Claro que há algumas linhas que são claramente charlatanescas. Existem, no entanto, outras correntes que não visam a uma profunda experiência de si, e seria absurdo cobrar delas que funcionassem de acordo com os cânones psicanalíticos. Se alguém tem medo de dirigir e apenas deseja se ver livre dessa fobia, sem entrar mais a fundo na própria subjetividade, que vá a um terapeuta comportamental, e se der certo tudo bem. A psicanálise estudou suficientemente a paranóia para que os psicanalistas se sintam perseguidos pela existência de outras abordagens.  

Veja – Na sua opinião, qual seria a reação do médico Sigmund Freud em relação aos atuais remédios psiquiátricos, como os antidepressivos?
Mezan – Provavelmente ele teria curiosidade, satisfação e interesse em acompanhar os progressos da medicina contemporânea, porque era um homem lúcido e inteligente. Ele vaticinava que no futuro se fariam melhores estudos sobre o cérebro e sobre a organização neurológica de uma maneira geral. Determinadas hipóteses que Freud formulou no Projeto Psicologia Científica, de 1895 – uma obra inteiramente especulativa –, revelam-se intuições, quase premonições, de fatos que vieram a ser descobertos 100, 110 anos depois. Não sei se ele receitaria medicamentos, mas provavelmente receberia com equanimidade as informações existentes, e também retiraria determinadas afirmações que fez se elas se revelassem contrárias às descobertas.  

Veja – Os estudos de Freud partiram da maneira como se dava a repressão sexual feminina no fim do século XIX e início do XX. Hoje a questão da sexualidade é encarada socialmente de forma bem mais tranqüila. Em que isso altera a teoria da psicanálise?
Mezan – Freud partiu do fato de que as mulheres, sendo privadas freqüentemente da possibilidade de satisfação sexual orgástica, muitas vezes ficavam extremamente irritadiças e desenvolviam sintomas que substituíam, no dizer dele, a própria vida sexual. A sexualidade hoje é um assunto mais livre do que há 100 anos, mas ela continua sendo uma enorme fonte de conflitos. Não tanto pela repressão, e sim pela extrema valorização social dessa atividade. O psicanalista Jurandir Freire Costa fez um estudo interessante sobre o culto ao corpo no qual ele mostrou de que maneira esse culto acaba engendrando novos imperativos tão categóricos quanto o "não goze" – só que no sentido contrário, de "goze". Apesar dos costumes mais liberais do que no tempo de Freud, a sexualidade continua sendo um dos fortes motivos pelos quais as pessoas procuram os analistas.  

Veja – O que a psicanálise tem a dizer hoje sobre a melhor forma de educar os filhos?
Mezan – Acho pertinente essa questão do limite, da qual tanto se fala atualmente. Pais que, em crianças, foram educados de forma muito rígida passam para o extremo oposto com os próprios filhos – a tolerância total. O resultado é a delinqüência, porque uma criança precisa de um quadro de referência no qual haja muito amor, mas também mostre claramente o que é permitido e o que é proibido. A ausência disso gera ataques de angústia na criança, os famosos "pitis" em restaurantes ou consultórios de pediatras. No caso específico do Brasil, acho que existe até um componente cultural nessa questão da falta de autoridade.  

Veja – Como assim?
Mezan – Pelo fato de nossa formação social ter sido tão autoritária, penso que um elemento contemporâneo brasileiro é justamente a contestação de qualquer autoridade. Estamos nos transformando num povo de litigantes. Raramente há uma lei que não seja contestada por alguém, mesmo que ela tenha sido produzida legitimamente e seja uma boa lei, no sentido de beneficiar um grande número de pessoas. Um resultado disso é a "indústria de liminares".  

Veja – Características culturais como essa atrapalham muito o Brasil?
Mezan – Acho que sim. Mas não são problemas insolúveis. Uma vez perguntei a um senhor mais velho, da mesma idade que meu pai teria hoje, se o Brasil havia melhorado. Ele respondeu: "Olha, meu filho, melhorou muito". E ele tem razão. Em 1927, quando ele tinha 10 anos, fazia menos de quarenta que a escravidão havia sido abolida, o Brasil era um país agrário, atrasado, ainda mais injusto, cheio de doenças etc. Está certo que, hoje, você vê muitas crianças pedindo esmolas no sinal, o que é triste. Todas essas crianças, contudo, têm dentes, pelo menos aqui em São Paulo, devido à fluoração da água. Hoje praticamente 100% das crianças freqüentam a escola. O ensino básico tem de ser melhorado, isso vai levar cinqüenta anos, mas já é um avanço elas estarem na escola. Nelson Rodrigues falava na tendência ciclotímica do brasileiro, e acho que muitas vezes somos mesmo assim – ou nos glorificamos demais ou caímos no complexo de vira-latas. Quando a crítica serve de estímulo para continuar na boa direção, ótimo. Mas, se serve como forma de apequenar aquilo que se conseguiu, acho lamentável.  

Veja – Dá para superar o trauma com o governo do PT, que se apresentava como o campeão da ética e se revelou uma organização criminosa, nas palavras do procurador-geral da República?
Mezan – Falando como cidadão e eleitor, eu penso que o PT, e o governo federal em particular, vai sofrer sérios reveses com essa decepção que causou à população do Brasil. É possível que haja, no entanto, algo positivo, que é o choque de realidade. Talvez a população perceba que o sonho foi grande demais, que era impossível essa ilusão messiânica, do homem que vai resolver todos os problemas. Isso pode ser um primeiro passo para equacionar as grandes questões brasileiras. Haverá também os que continuarão prisioneiros dessa ilusão. Estes acreditarão que Lula foi um líder traído, e votarão nele novamente.  

Veja – É possível saber algo sobre a personalidade do presidente a partir de seus discursos?
Mezan – Lula gosta muito de se comparar a seus antecessores, dizendo que fez mais do que eles. Minha impressão é que isso tem dois componentes: um de classe e outro que eu vou chamar rapidamente de "edípico". A questão de classe é o "eu sou melhor que meu patrão, meu governo é melhor do que o dos patrões, nós somos melhores do que os patrões". O lado edípico é a luta com o pai, representado aqui pelos que vieram antes, e isso se reflete numa rivalidade com figuras prestigiosas, como Fernando Henrique, Getúlio, Juscelino, todos os que o precederam. Quem está constantemente se comparando com outro não se sente seguro daquilo que está fazendo. Você ouve Maradona dizendo que é melhor do que Pelé, mas não Pelé dizendo que é melhor do que Maradona. Veja bem, não estou fazendo psicanálise selvagem do presidente, seria ridículo e tiraria a força do argumento. Estou dizendo apenas que, de maneira genérica, aquele que está constantemente em rivalidade com seu predecessor sugere fortemente uma problemática edípica, do tipo "eu ainda não acabei de matar o pai". Para um líder político, isso me parece negativo, além de ser irritante.

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