Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 29, 2006

MILLÔR

VEJA
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Eu não disse?

Sempre concordei com meus próprios argumentos. Sempre os achei impecavelmente bem fundamentados. Dizia, para mim mesmo, claro, pois acho cansativas as contestações: "Millôr, cuidado com as hipóteses. Cuida bem das probabilidades que das conseqüências eu me encarrego". E ia dormir, satisfeito. Até pleno. Como o outro, que descansou depois dos seis dias em que organizou esta joça em que nos equilibramos. Mas a convicção com que me empenhei para que ninguém acreditasse em nada, sobretudo em mim! E todos ouvindo, boquiabertos, olhifechados, refestelados nas cadeiras durante horas. As palavras não eram ocas, os ouvidos, porém, mouquíssimos. De mercador, é isso aí.

Agora torcem a orelha e não sai sangue. Para ser verdadeiro, antes também.

Mas as advertências estavam lá. E não eram implícitas, pra serem entendidas daqui a muito, talvez até na posteridade. Não senhor. Eram atuais e pão-pão, queijo-queijo, como diziam os mineiros, antes de inventar o pão de queijo. Mas, quando os preços subiram, nem pão-pão nem queijo-queijo. Estou satisfeito com isso? Devia? A do palhaço é mesmo ver ele, circo, pegar fogo? Que humorista é mesmo ladrão de mulhé? Ainda bem. Nossa roupa é meio ridícula, eu sei, mas a sedução é irresistível. E o trabalho é sério. Andar no trapézio ninguém falsifica.

Mas pode ser mesmo que o problema todo esteja só na roupa. Dona Lu Alckmin que o diga.

Quem sabe é por isso que a profissão não vai pra diante? Se a gente pusesse um cravo na lapela, uns botões dourados na manga, uns alamares – ainda se usam, sequer se sabe o que quer dizer esse nome?... Sei não. Diz que o hábito não faz o monge. Eu respondo – pode ser, mas fá-lo parecer de longe. Como é que você vai saber que o cara não é general? Jeitão de general, farda de general, fala de general. Antes de você pedir as credenciais a ele, já está mandando o avião parar e botando você em cana. O quê, general não é pra isso? Então você não é do meu tempo.

Mas, honra seja feita, hoje ninguém contesta que eu cansei de chamar atenção para os pequenos ruídos. E sobretudo pras rachaduras no sótão e no porão, junto à cozinha. Todos estavam com cera no ouvido, venda nos olhos, bocca chiusa, pra não entrar mosca, tapando as narinas pra não sentir o cheiro; aquele negócio. Quando a trave de cima caiu, caiu com ela, naturalmente, a parte central da nave. É claro que a abóbada não podia resistir e veio abaixo, trazendo também a caixa-d'água novinha, com 150 000 litros d'água. Inundou tudo, vocês se lembram. Os que não ficaram soterrados se afogaram. Sorte, porque o resto saiu queimado com o fogo, que, segundo os peritos, começou no 3º andar, devido a um curto-circuito. Eu só me salvei porque, às sextas, eu nunca vou à missa. Nem no resto da semana, mas isso é outra história.

Estava, como sempre, lá em cima, no último galho, chupando as carambolas. Quando vieram me avisar, que é que eu podia fazer? Eu sou humano. Ofereci uma carambola, mas não me contive. Disse:

"Eu não disse?!".

 


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