O GLOBO
Empenhado em me dedicar à solucionática, em vez da problemática, tenho pensado muito em nós, como povo. É indiscutível que, com a nossa existência, como já tive oportunidade de escrever, atrapalhamos bastante o governo. Dizem que Calígula, o famoso imperador romano que nomeou seu cavalo senador (hoje não fazemos mais isso, desmando de tirano degenerado; hoje elegemos mesmo), expressou o desejo de que seu povo tivesse um só pescoço, para que ele pudesse cortá-lo logo de uma vez e, assim, resolver as chateações que ele lhe causava. Imagino que alguns dos nossos governantes se sintam de forma parecida, porque realmente "este país" ficaria bem melhor sem o povo, que só serve para reclamar e estragar as estatísticas deles.
Contudo, não quis o bom Deus dar-nos um só pescoço, de maneira que persistimos em abusar da paciência de nossos extenuados governantes. Chegamos a comentar, muito caluniosamente, que somos governados por uma quadrilha e os maldosos ainda acrescentam que essa é mais uma manifestação do complexo de inferioridade brasileiro, pois não seria uma quadrilha só, coisa de pobre, mas diversas quadrilhas de escol. É de desanimar qualquer um. Vê-se defeito em tudo e o próprio presidente, em observações notáveis para quem não ouviu nem sabe de nada, já se queixou várias vezes "deste país" ou, melhor dizendo, de características que ele enxerga (sim, carecem de fundamento os boatos de que ele sempre enxergou e ouviu mal, isso é só quando tem corrupto por perto, porque a alergia dele a esses maus elementos é tal que lhe causa surdez, miopia, astigmatismo, vista cansada e catarata) "neste país".
Agora tem gente se queixando de que os deputados usam notas frias. Antigamente era bandidagem, mas atualmente não. Se fosse, os deputados não estariam fazendo tanto uso delas. Há quem insinue que, além de falsários, são ladrões. Aonde chegaremos com esse moralismo pequeno-burguês? Nós os forçamos a essa situação e, quando eles recorrem ao antigamente reprovável expediente de fajutar notas fiscais, ficamos achando que são ladrões, assim como são seus cúmplices os encarregados de soltar o dinheiro, que não verificam as notas, e os emissores destas, que não hesitam em delinqüir. Tudo errado, tudo errado, nós é que os obrigamos a agir assim. Como em qualquer lugar do mundo, deputado tem assessor de graça, casa de graça, viagem de graça, correio de graça e mais não sei quantas coisas de graça, para segurar a merreca que lhe pagamos, suando numa semana de dois ou três dias e pegando uma grana batalhada em convocações extraordinárias e benefícios que sequer sabemos quais são, porque deputado é assim por natureza, muito discreto.
Proponho, em primeiro lugar, que o imposto de renda seja logo elevado para 50 por cento de tudo o que ganhamos, não compreendidos aí os ricos (dinheiro não traz felicidade, não sei se vocês já ouviram isso, pobre não compreende que o homem feliz é o que não tem camisa), bancos e outros que não pagam imposto de renda. É mais do que justo, meio a meio. Na verdade, eles deviam pegar mais um pouco do que esses míseros cinqüentinha, mas estamos num governo popular, que não vai atacar a bolsa do assalariado e suporta o prejuízo com resignação, ainda tendo de aturar as queixas. Quando a Câmara organizar, o que imagino que já deve estar sendo articulado, uma Comissão Parlamentar de Observação da Copa do Mundo, composta de deputados livremente eleitos por voto secreto e seus familiares, eis que a tensão de passar uma Copa longe da família pode provocar estresse, vamos demonstrar a eles nossa gratidão e nosso reconhecimento. Vamos propor recesso remunerado para a Copa e que não um mas todos os deputados desfrutem do benefício, claro que sem exageros, limitando-se as diárias, por exemplo, a uns dois mil euros, que nem dão para pagar a estada num hotel na Alemanha à altura deles.
Enquanto isso, nosso presidente faz novo sacrifício, ficando por aqui mesmo, até porque tem a campanha a cuidar e poderá observar a Copa nos 1.200 telões de plasma que o Alvorada deverá adquirir após cuidadosa licitação pública. Legislar não será problema com a ausência dos deputados, porque ele já está habituado a exercer essa função com as Medidas Provisórias. Além do mais, já conhece bem a Europa e sua família acaba de obter passaportes italianos, com a conseqüência de que, sendo casado com uma italiana, ele talvez vire italiano, quiçá uma boa para ele, pois poderá candidatar-se lá e ser o melhor governante que a Itália já teve desde Otávio Augusto. Espero apenas que a Primeira Família não tenha votado no Berlusconi e aposto que, se já tem passaporte italiano, o presidente tampouco votou nele.
Quanto a nós, o povo, inventariemos nossas bênçãos, em vez de continuar com as lamúrias de sempre. O melhor presidente que "este país" já teve (atenção: já ensinei aqui, mas ensino de novo, no interesse da brasileirada que vai à Copa: "Nosso Guia", em alemão, é "Unser Führer" , não sei se pega muito bem por lá hoje em dia, é melhor deixar para puxar o saco do Homem em português mesmo) declarou maravilhado que o Brasil está perto da perfeição em matéria de saúde. Como não tínhamos notado isso, a que ponto chega nossa ingratidão, não notando a evidência diante dos olhos dele e desmentida pela mentiralhada do povo e da imprensa inimiga da pátria? E a auto-suficiência do petróleo não nos diz nada? Ela seria atingida de qualquer forma, mas ninguém notou o lance magistral que a antecipou para agora. Crescendo a taxas ridículas, a economia brasileira manteve baixa a demanda de petróleo. Sintam a originalidade. Tivemos um crescimento mixuruca em nome de um ideal mais nobre, a auto-suficiência em petróleo. Não crescemos, mas a saúde pública é exemplar e somos auto-suficientes em petróleo, nunca estaremos satisfeitos?
JOÃO UBALDO RIBEIRO é escritor.
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