A latinização dos EUA |
artigo - Rubens Barbosa |
O Estado de S. Paulo |
25/4/2006 |
A questão dos imigrantes ilegais vem adquirindo nos EUA uma dimensão política de conseqüências imprevisíveis. Demonstrações de protesto cada vez maiores e ruidosas, em mais de cem cidades, estão colocando a política de imigração no topo da agenda do governo e do Congresso, com perspectiva de se tornar um fator influente nas próximas eleições legislativas, em novembro, e para a Presidência, em dois anos. Os problemas que a administração republicana enfrenta são de dupla natureza: político-humanitária - o que fazer com os mais de 11 milhões de mexicanos ilegais no país - e de segurança - como controlar a fronteira e impedir a entrada de cerca de 400 mil imigrantes mexicanos por ano. Os latino-americanos nos EUA já somam mais de 35 milhões e, tendo ultrapassado a comunidade negra, se transformaram, em 2005, na maior das minorias do país. Representando cerca de 12% dos 300 milhões de habitantes dos EUA, a população latina foi responsável por quase metade do aumento demográfico americano, de 2000 a 2004. O número de imigrantes passou, assim, a ser inferior ao da quantidade de latinos nascidos nos EUA. Desse total, vindos de 22 países, cerca de 65% seriam de origem mexicana; 10%, sul-americana; 9%, salvadorenha; 6%, cubana, dominicana ou guatemalteca, a maioria com menos de 18 anos. Entre os sul-americanos, ao redor de 50% seriam colombianos e cerca de 25%, brasileiros. A exemplo do que ocorreu com a chegada dos imigrantes europeus na virada do século 19 para o século 20, os latinos estão modificando a maneira como o país se apresenta, sente, pensa, come, dança e vota. Em deliciosa crônica, Mathews Shirts, colunista deste jornal, comentou que os consumidores latinos preferem a Coca-Cola açucarada e com garrafa de vidro importada do México à bebida em lata produzida nos EUA. Do ponto de vista político, embora a porcentagem absoluta do voto latino ainda seja reduzida, representando somente 6% dos eleitores na eleição de 1998 para o Congresso norte-americano, as demonstrações públicas mostraram uma capacidade de organização e de influência nova na cena política norte-americana. A força política do voto latino está presente em grandes, médias e pequenas cidades. Cerca de 40% dos latinos vivem em Los Angeles, Nova York e Miami. Se acrescentarmos São Francisco, San José e Chicago, sobe para mais de 45%. Dez Estados, de grande importância estratégica, posto que representam mais de 200 dos 270 votos no colégio eleitoral que elege o presidente, concentram mais de 85% do total da população latina (Califórnia, Arizona, Novo México, Colorado, Illinois, Nova York, Massachusetts, New Jersey e Flórida). Os latinos, como grupo, ainda não têm uma identidade política própria e se definem mais por interesses concretos imediatistas (política imigratória e condições de vida, por exemplo). Como se poderia prever, alguns setores mais conservadores e tradicionalistas da sociedade norte-americana estão reagindo fortemente. Um projeto de maior controle e de construção de um muro de 1.200 km de extensão ao longo de trechos da fronteira com o México, a defesa de política de imigração mais restritiva, com a condenação dos que ajudam estrangeiros a entrar ou a permanecer sem visto, e a deportação dos imigrantes sem documentação são algumas das propostas dos grupos racistas mais vocais e violentos, sobretudo no Partido Republicano. O aparecimento de um sentimento xenófobo e o oportunismo dos políticos, sobretudo do sul, foram responsáveis pela aprovação, em dezembro, de projeto de lei na Câmara dos Deputados que incluiu todas as reivindicações dos grupos ultra-radicais. No Senado, busca-se uma solução de compromisso com a legalização de parte dos não-documentados para evitar a criação de um clima de radicalização interna. Para o cientista político Samuel P. Huntington, um dos expoentes dos radicais, a grande ameaça à integridade dos EUA não provém do Oriente, como se poderia deduzir a partir da leitura de seu livro O Choque das Civilizações, mas da América Latina, pela crescente presença dos imigrantes dessa região. Em seu último livro, Quem Somos Nós (Who Are We), Huntington observa que os imigrantes europeus (sucessivas levas de alemães, escandinavos, irlandeses, poloneses, italianos), judeus e orientais nunca representaram um questionamento aos fundamentos da sociedade norte-americana, isto é, ao conjunto de valores raciais, étnicos, culturais religiosos e ideológicos que se consolidaram ao longo do processo de colonização e independência dos EUA, e que fez sua grandeza. Os elementos mais importantes do estilo de vida norte-americano - segundo Huntington - seriam a língua inglesa, o cristianismo, o compromisso religioso, o império da lei, o respeito a direitos individuais, os valores protestantes do individualismo e da ética do trabalho. Os latinos seriam responsáveis pela gradual erosão dos verdadeiros interesses e valores norte-americanos. Por uma série de características únicas, a imigração latino-americana (em especial a mexicana), segundo Huntington, poderia deitar a perder o "sonho americano", como resultado da contigüidade territorial entre os EUA e o México (o que tornaria mais fácil a imigração e mais difícil o rompimento dos laços familiares e de valores distintos do outro lado da fronteira), da escala imigratória sem precedentes, da alta concentração regional dentro do território dos EUA, preferencialmente em Estados cujos territórios já fizeram parte do México no passado e cuja perda territorial nunca foi totalmente digerida. Nessa, de certo modo, promíscua vizinhança, o que está acontecendo nos dias que correm é a latinização dos EUA, em especial no sul (em 2050, cerca de um quarto da população dos EUA será latina), e uma reocupação populacional do território perdido com sabor de pacífica reconquista.
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