Folha de S. Paulo
A denúncia apresentada pelo procurador-geral contra a "organização criminosa" articulada à sombra do Planalto para corromper parlamentares, estabilizar uma maioria no Congresso e avançar o "projeto de poder" petista é o retrato acabado do governo. Ao contrário do que sugere Lula, esse retrato não se modificará ao sabor do destino dos processos judiciais individuais abertos pela denúncia, que descreve uma ação coletiva, de "quadrilha". É por isso que o PT, o aparelho político do qual emanou a "organização criminosa", que antes proclamava-se "diferente", hoje difunde o conceito de que "todos são iguais" e a noção de que a corrupção sistêmica no governo é a continuidade de um padrão vigente no "octonato" de FHC.
Muitos anos atrás, Lula cunhou a célebre acusação contra os "300 picaretas" do Congresso, uma frase cuidadosamente genérica, que lhe granjeou aplausos sem gerar a obrigação de formalizar denúncias e arrostar as conseqüências correspondentes nas arenas política e judicial. Aquela foi a senha para a onda de acusações de corrupção lançadas contra o governo FHC, que ganharam aura de verdades incontestáveis, mas, com exceções periféricas, nunca se traduziram em investigações formais. O caso mais notório, pelos valores envolvidos e pela pretensão de atingir a espinha dorsal do governo, foi a alegação de desvios bilionários do dinheiro das privatizações.
Na época, as acusações não prosperaram como inquéritos no âmbito judicial ou parlamentar. Os acusadores, impávidos, atribuíram a culpa à inação do antigo procurador-geral e ao bloqueio promovido pela maioria governista no Congresso. Mas eles se tornaram governo e, mesmo dispondo de todos os meios de investigação, preferiram conservar as antigas acusações no limbo. O expediente, que é uma modalidade de prevaricação, cobre a política brasileira com o pesado manto da suspeita e nutre uma narrativa conveniente da qual se lança mão em conjunturas de necessidade.
A estratégia não se sustentaria sem a colaboração, proposital ou não, de comentaristas políticos que a tomam de empréstimo para certificar a sua própria "independência". No conforto proporcionado pela irresponsabilidade, esses comentaristas flertam com o senso comum e, imaginando-se "neutros", sequer suspeitam que participam de uma impostura dotada de claro sentido político.
O Lula dos "300 picaretas" sem nome é o mesmo que, no poder, abriu caminho para a fabricação pecuniária de uma base parlamentar de picaretas nominalmente identificados pelo procurador-geral. Não há contradição, mas coerência e continuidade, na estratégia de desmoralização das instituições políticas. A acusação genérica, a calúnia, armas do líder oposicionista, transfiguraram-se na corrupção ativa sustentada pela caneta que assina nomeações e edita medidas provisórias.
A doença da corrupção existe no mundo inteiro, em todos os governos. Mas as suas modalidades agudas, sistêmicas, desenvolvem-se no ambiente degenerativo formado pelo confronto de líderes carismáticos e salvacionistas com as instituições da democracia. Os primeiros, cuja força deriva do contato direto com o povo, precisam desvencilhar-se da teia de mediações institucionais que circunscrevem a sua influência. O instrumento para isso, na falta de uma polícia política, é o dinheiro clandestino.