De boas intenções , o inferno está pavimentado. O projeto de lei do Estatuto da Igualdade Racial, tramitando no Congresso Nacional, é um desses projetos que, sob o manto de resolver um problema histórico do Brasil, termina por gerar novos conflitos que o país poderia muito bem se poupar.
É como se, por uma questão de culpa, devêssemos fazer vista curta sobre falsas soluções propostas. A desigualdade social é, certamente, um dos grandes problemas nacionais que diferentes governos não têm conseguido equacionar adequadamente. Uma de suas manifestações é uma questão racial que nos é apresentada como se pudesse ser resolvida com critérios propriamente raciais, e não sociais. A desigualdade deveria ser resolvida por meio da criação de políticas ativas de igualdade de oportunidades, que criem condições para que os indivíduos possam exercer efetivamente sua capacidade de livre escolha.
Sob o pretexto de corrigir uma desigualdade social mais acentuada em indivíduos de cor, o estatuto termina por abolir a mesma igualdade de oportunidades que diz defender ao implementar um critério particular -a cor- que não concederia aos indivíduos em geral as mesmas oportunidades. Uma efetiva igualdade de oportunidades deveria considerar universalmente os indivíduos, o que significa, no caso, políticas pró-ativas de promoção social, como as decorrentes, por exemplo, de políticas educacionais e de saúde. A igualdade de oportunidades, proposta pelo estatuto, não se cria com uma nova forma de discriminação, embora dita pró-ativa.
Se numa instituição de conhecimento como a universidade, que se caracteriza pelo saber e pelo mérito, tendo como base o indivíduo, independentemente de sua cor, ocorre uma espécie de nivelamento imposto por cotas, é o mérito mesmo e a hierarquia de conhecimento que se encontram seriamente prejudicados. Muito mais efetiva seria a valorização de um ensino médio de qualidade que propiciasse que indivíduos socialmente desfavorecidos pudessem se equiparar, em oportunidades, aos que possuem melhores condições sociais. Como solução emergencial, poder-se-ia mesmo cogitar de cursos pré-vestibular, organizados e oferecidos gratuitamente por universidades.
O projeto do estatuto propõe, ainda, para determinar a cor de uma pessoa, a autoclassificação. Valeria, então, a declaração de um indivíduo sobre a sua cor, por mais arbitrária que ela possa ser. Uma pessoa de tez morena/branca poderia, por conveniência na obtenção de um emprego ou na alocação de recursos para sua empresa, se declarar de cor, criando uma questão inextricável num país profundamente miscigenado. Imaginem uma controvérsia produzida por um funcionário ou um outro cidadão que, prejudicado, decidisse questionar a declaração. O que se faria? Seria criada uma junta médica que teria a última palavra na determinação da cor de uma pessoa? O perigo político aí embutido é enorme!
O mais grave, porém, é que esse projeto de estatuto está criando um novo MST e uma nova Comissão Pastoral da Terra, ou os mesmos com novas funções, além de conferir ao Ministério de Desenvolvimento Agrário e ao Incra novos poderes. O estatuto cria uma reserva de terras para remanescentes ou descendentes dos quilombos, que se autodefiniriam enquanto tais. A medição e delimitação das terras seriam feitas pelos próprios interessados, sendo-lhes facultado apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental. É uma outra forma da autoclassificação, ou seja, o arbítrio. Por simples manifestação oral ou escrita ao Incra, se daria início ao processo administrativo. Caberia, então, ao Ministério de Desenvolvimento Agrário, por intermédio do Incra, dar continuidade ao requerimento, procedendo a todos os trâmites de identificação, delimitação, reconhecimento e desapropriação das terras ou de regularização, se já houver pessoas lá vivendo.
O processo seria simples se os descendentes dos quilombos lá estivessem efetivamente, pois seria um mero ato de regularização fundiária. O caso muda de figura se os auto-intitulados remanescentes puderem exercer um "direito" a terras contra proprietários já estabelecidos em virtude de um mero ato de auto-atribuição, equivalente à autoclassificação da cor. A participação direta dos interessados em todas as fases do processo, inclusive indicando representantes e assistentes técnicos, mostra que o julgamento final já estaria de certa maneira garantido. Invasões de terras teriam agora novas justificativas e amparo legal. Certamente haverá uma recrudescência de conflitos no campo brasileiro, com a "vantagem adicional" de que essas disposições legais passariam a valer também para as áreas urbanas. Campo e cidade seriam objeto de novos e intermináveis conflitos.
Denis Lerrer Rosenfield, 55, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e editor da revista "Filosofia Política". É autor de "Política e Liberdade em Hegel", entre outros.