O Globo |
27/4/2006 |
A questão religiosa no centro dos conflitos políticos do mundo moderno foi presença permanente nas palestras do seminário "Cultura da Diferença na Eurásia", promovido pela Academia da Latinidade na capital do Azerbaijão. Mas duas palestras trataram com mais profundidade do tema: a do cientista politico e diplomata Sérgio Paulo Rouanet, ex-ministro da Cultura brasileiro; e a de Susan Buck-Morss, professora de filosofia política da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, uma destacada representante da esquerda americana na academia. Os dois defenderam, em abordagens distintas, praticamente a mesma idéia central: a de que todo fundamentalismo religioso é nocivo à Humanidade, mas que não existe apenas um culpado pela violência religiosa. Tomando como base o famoso debate promovido em 2004 entre o filósofo Jürgen Habermas e o cardeal Joseph Ratzinger, hoje Papa Bento XVI, Sérgio Rouanet defendeu a tese de que já não é mais suficiente a secularização do Estado, mas, numa atitude pós-secular, o Estado tem que dar grande atenção à semântica e ao potencial de motivação que as tradições religiosas têm. Habermas, naquele debate, reconheceu que a religião é uma força social muito ativa, com um papel importante a desempenhar em um mundo que ele vê dominado pela anomia, ceticismo político, narcisismo, que corroem o processo democrático. Segundo ele, a religião pode reintroduzir sentimentos como a solidariedade e responsabilidade na arena política. O Estado não deve ser secularista no sentido ultrapassado de relegar a religião ao limbo do obscurantismo, mas sim, segundo Habermas, usar a religião, num processo de aprendizado recíproco entre crentes e não crentes. Rouanet cita várias ocasiões em que esse intercâmbio cultural aconteceu, como quando a filosofia assimilou vários conceitos do Cristianismo, especialmente a idéia de que todos os homens são criados à imagem de Deus, o que foi transformado pela doutrina secular na afirmação de que todos os homens têm direito à dignidade. Mas Rouanet também adverte que quando se discute a relação entre fé e cultura, os temas básicos não são universais, como gostamos de pensar, mas estritamente dois temas da cultura ocidental: cristianismo e racionalidade secular. Ele cita a controvérsia sobre os direitos humanos para ilustrar a questão: qual conceito de direitos humanos devemos adotar como base da discussão: O islâmico? O chinês? O malasiano? O latino-americano? Rouanet diz que Ratzinger deixou claro no debate com Habermas que também ele sabe que não há consenso global em temas como esses. O então cardeal Ratzinger, concordando com a visão de sociedade pós-secular de Habermas, atacou o que chamou de "patologias da religião", sugerindo que a razão tem que ter a função controladora para "purificar" e "organizar" a religião. Rouanet diz que, apesar de obviamente estar se referindo ao terrorismo islâmico, Ratzinger também se referia aos "pecados" do passado da religião católica, quando a Congregação para Doutrina da Fé, departamento que chefiava na ocasião, foi identificado como "a Santa Inquisição". Para Ratzinger, também as "patologias da razão" deveriam ser controladas pela religião, se referindo a questões como armas atômicas ou engenharia genética. Para Rouanet, pós-secularização significa um mundo onde a razão ouvirá as diferentes religiões. Mas ele não crê, como Ratzinger, que razão e fé corrigirão uma à outra. Ele prefere se referir à bomba atômica, ou às clonagens, como patologias induzidas não pela razão simplesmente, mas pela razão dissociada da comunicação entre os seres humanos. Para Rouanet, as patologias ocorrem quando a lógica do sistema (mercado e racionalismo burocrático seriam exemplos) prevalece sobre a lógica da comunicação humana. Mas Rouanet admite que a comunicação precisa da religião para dar sentido ao mundo, e aumentar a capacidade de influência sobre a lógica do sistema. Por isso a correlação entre razão e religião estabelecida por Ratzinger pode ser a base intelectual de uma utopia que bane do mundo todos os tipos de fundamentalismo, encerrou esperançosamente Rouanet. Já Susan Buck-Morss acha que a redescoberta da legitimação teológica por facções políticas das três religiões monoteístas — islâmica, cristã e judaica — é fundamental para explicar a atual crise internacional. "Compartilhando o mesmo Deus, elas encaram umas às outras como inimigos mortais", resume Buck-Morss. Essa situação, ressalta, traz de volta ao debate o termo "teologia política" criado por Carls Schmitt, um professor alemão de jurisprudência que esteve muito em voga nos anos 20 do século passado. Para a professora de Cornell, a soberania teologicamente influenciada sobrevive hoje na modernidade secular, e é central tanto para a ordem mundial hegemônica (se referindo aos Estados Unidos) quanto para a violência não-estatal que se opõe à hegemonia (os terroristas da Al-Qaeda, por exemplo). Para ela, cultura e barbarismo são dois lados da idade de ouro de qualquer civilização, seja a romana, a britânica, a americana atual, a idade clássica do Islã ou o império chinês. Todas usaram o barbarismo do poder, que permite ao mesmo tempo o controle e a ordem legal, e também permite que elas floresçam. "Nenhuma grande civilização esteve livre dessa contradição", afirmou Susan Buck-Morss. Por isso, ela diz que para salvar nossas diferentes tradições culturais — e aí ela enumera lado a lado o marxismo, a idade de ouro do do islã e o Iluminismo europeu — não podemos confundir o sonho do passado com a realidade. Assim fazendo, retiramos da cultura seu papel ideológico e evitamos que justifique não apenas a violência passada quanto novas violências cometidas em seu nome. |
Entrevista:O Estado inteligente
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