Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 29, 2006

Chernobyl Vinte anos depois do desastre

VEJA
Pesadelo que não tem fim

Vinte anos depois do acidente de Chernobyl,
a radioatividade ainda faz vítimas entre a
população e na natureza do Leste Europeu


Okky de Souza

 

Alexander Khudotioply/Reuters
Criança em tratamento de câncer num hospital da Ucrânia: depois do acidente, as cidades próximas à usina foram evacuadas, mas a radiação nuclear espalhou-se com rapidez


A energia nuclear é responsável por 16% da eletricidade consumida no mundo – e também por alguns dos piores pesadelos da humanidade. A concretização de um deles, o acidente na usina de Chernobyl, na Ucrânia, completou vinte anos na semana passada. A data foi lembrada em cerimônias na capital, Kiev, e em várias cidades do país. Procissões saíram às ruas para homenagear os milhares de pessoas mortas de doenças relacionadas à radiação nuclear desde que um reator da usina explodiu, liberando 100 vezes mais radioatividade do que a bomba lançada pelos americanos em Hiroshima na II Guerra. Nas regiões contaminadas na Ucrânia e nas vizinhas Bielo-Rússia e Rússia, hoje a incidência de câncer na tireóide e de mama é excepcionalmente alta, assim como as anomalias genéticas em recém-nascidos. A população sob risco, estimada em 7 milhões de pessoas, vive sob o impacto psicológico do medo: é possível que os efeitos da radiação perdurem por décadas, ou séculos, e que no futuro possam causar outros tipos de doença.

O acidente de Chernobyl, que se tornaria o maior desastre nuclear da história, ocorreu na madrugada do dia 26 de abril, durante um teste de rotina do reator número 4 da usina. Por um erro dos técnicos, o processo de reação nuclear em cadeia se descontrolou, aquecendo a água que deveria resfriar o reator. Seguiram-se uma explosão e um incêndio que durou dez dias, espalhando toneladas de material radioativo por uma área de 150.000 quilômetros quadrados. Nada menos de 3.500 homens participaram do combate às chamas, tentando apressadamente isolar o material radioativo com areia e chumbo. No dia seguinte à explosão, 350.000 pessoas foram evacuadas das áreas de mais alto risco, inclusive na cidade de Pripyat, erguida nos anos 70 para abrigar os trabalhadores da usina. Na época do desastre de Chernobyl, a Ucrânia fazia parte da União Soviética. Apesar da gravidade da situação, o Kremlin, que tinha por norma ocultar as más notícias sob o tapete, demorou três dias para admitir que o acidente havia acontecido. Só o fez depois que satélites espiões americanos identificaram o incêndio e a nuvem radioativa alcançou os países escandinavos.


Soldados americanos observam teste atômico em 1951: expostos à radiação

A usina de Chernobyl tornou-se uma assombração nuclear para a Ucrânia e para o mundo. Os escombros do reator número 4 – e parte do material radioativo que ele abrigava – foram selados com uma enorme estrutura de cimento, batizada de sarcófago, que agora começa a apresentar rachaduras. Quando chove, as substâncias radioativas vazam para fora da construção. Como a retirada desse material seria uma empreitada de altíssimo risco, há em curso um projeto, bancado por um consórcio de países, para construir um sarcófago mais moderno e seguro. Ele teria o tamanho de um ginásio de esportes e custaria 1,1 bilhão de dólares. A área num raio de 30 quilômetros em torno de Chernobyl continua interditada e cercada de arame farpado. Muita gente que morava no local, no entanto, principalmente os que hoje são idosos, desafia a proibição e se instala na chamada área de exclusão, plantando em terra ainda contaminada e bebendo água radioativa. Em grande parte, ao retornar a seus antigos lares, essas pessoas fogem das comunidades formadas nas regiões vizinhas pela população evacuada da área de Chernobyl vinte anos atrás. Hoje, segundo estatísticas da Agência Internacional de Energia Atômica, há nessas comunidades graves problemas sociais. Os índices de alcoolismo, desemprego e divórcio são altíssimos. Um número elevado de seus integrantes sofre de problemas emocionais causados pela possibilidade iminente de contrair câncer e outras doenças provocadas pela radiação nuclear a que foram – ou ainda são – submetidos.

Na área em volta de Chernobyl, a natureza pouco a pouco volta a ocupar seu espaço. Sem a presença do homem, árvores, plantas e animais se multiplicam com um vigor que espanta os cientistas e ao mesmo tempo os preocupa, já que várias espécies sofreram mutações. "Nas áreas mais contaminadas, 20% dos pássaros apresentam despigmentação na plumagem, causada pela morte das células responsáveis pela cor das penas", disse a VEJA o biólogo americano Timothy Mousseau, da Universidade da Carolina do Sul, que há seis anos estuda a natureza na zona de exclusão de Chernobyl. "Além disso, os galhos das árvores crescem num padrão desordenado", ele completa. Ainda é cedo para medir a dimensão exata dos estragos que o desastre de Chernobyl causou e vai continuar causando. A contaminação nuclear é um fenômeno relativamente novo, e parte de seus efeitos ainda é desconhecida. Quando os americanos fizeram os primeiros testes com bombas nucleares, nos anos 40, sabia-se tão pouco sobre os riscos de contaminação que o espetáculo do cogumelo atômico se erguendo rumo ao céu tinha como testemunhas soldados que não usavam nenhum tipo de proteção contra a radiação.

 

Ronen Zilberman/AP
O Atol de Bikini, no Pacífico: palco de testes nucleares nos anos 40 e 50, hoje é um paraíso do mergulho esportivo

A ação da radioatividade em seres humanos só pôde ser plenamente avaliada a partir das bombas lançadas pelos americanos nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, em 1945. As explosões mataram instantaneamente 120.000 pessoas. Nos anos seguintes, a ação residual da radiação causou mortes por cânceres e por doenças cardiovasculares e respiratórias. Os efeitos da radioatividade dissiparam-se desde então, e as duas cidades são hoje localidades prósperas em que a mortandade provocada pelas bombas sobrevive apenas na memória. O mesmo ocorre com o Atol de Bikini, um grupo de 23 ilhas no Oceano Pacífico que nas décadas de 40 e 50 foi palco de uma série de testes com bombas nucleares. Em 1954, os Estados Unidos detonaram nas Ilhas Bikini sua mais poderosa bomba nuclear, 1.000 vezes mais potente que a de Hiroshima. A Bravo, como era chamada, espalhou radiação por uma área de 8.000 quilômetros quadrados, atingindo nativos e militares. O local permaneceu isolado até 1996, quando relatórios de instituições como o Departamento de Energia dos Estados Unidos declararam o atol livre de radiações perigosas. Hoje, as Ilhas Bikini são um excelente local para a prática de mergulho esportivo e atraem turistas do mundo inteiro.

Os cientistas avaliam que o caso de Chernobyl é completamente diferente. Se uma bomba atômica é lançada sobre uma cidade, a população imediatamente é exposta a uma combinação de raios gama e nêutrons – todos os tecidos do corpo recebem essa carga de maneira uniforme. Em Chernobyl, à exceção do que ocorreu com aqueles que se encontravam próximos à usina no dia do acidente, a contaminação ocorre nos órgãos internos, por isótopos radioativos. Dessa forma, cada um dos tecidos recebe uma dose diferente de radiação. "É preciso um estudo exaustivo dos casos de contaminação e morte em Chernobyl para que se possa prever o que vai acontecer no futuro com as populações atingidas", alertam os biólogos Dillwyn Williams e Keith Baverstock numa recente edição da revista científica Nature. Até hoje, porém, muito pouco foi investigado sobre as conseqüências da radiação de Chernobyl. No Japão, a partir dos anos 50, a fundação Radiation Effects Research examinou mais de 100.000 sobreviventes das bombas de Hiroshima e Nagasaki para entender seus efeitos no organismo humano. No caso de Chernobyl, não se tem sequer uma estatística confiável sobre o número de vítimas fatais que o acidente provocou.


oto Photodisc

 

 



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