Promotor do Tribunal Penal Internacional diz
que o julgamento de genocidas e torturadores
tem caráter didático
Thomaz Favaro
Como promotor-chefe do Tribunal Penal Internacional (TPI), o argentino Luis Moreno-Ocampo, 56 anos, está a cargo de uma missão única: a de investigar e processar responsáveis por crimes contra a humanidade e genocídio, independentemente do país em que tenham sido cometidos. Com base nessas atribuições, na segunda-feira passada ele pediu a prisão do presidente do Sudão, Omar al-Bashir. Ocampo também estuda a abertura de processos contra estrangeiros que ajudam as Farc. Criado em 1998, com a adesão de 107 países, o TPI é o primeiro sistema mundial de justiça permanente. Tribunais internacionais do passado, como o que julgou os carrascos nazistas em Nuremberg, foram temporários. Poucos advogados são tão qualificados para a função. Nos anos 80, Ocampo participou da equipe de acusação que mandou para a cadeia os generais da ditadura argentina, incluindo três ex-chefes de estado. Professor visitante nas universidades Stanford e Harvard e membro da diretoria da Transparência Internacional, ONG dedicada a combater a corrupção, Ocampo concedeu esta entrevista a VEJA por telefone, de seu escritório em Haia, na Holanda.
Veja – Por que o senhor pediu a prisão do presidente do Sudão?
Ocampo – Na região de Darfur, os cidadãos são atacados pelas pessoas que, teoricamente, deveriam protegê-los. O presidente do Sudão, Omar Hassan Ahmad al-Bashir, utiliza-se do Exército nacional e de milícias armadas, chamadas janjaweeds, para atacar três grupos étnicos do país. Esses povos foram removidos de sua própria terra e enviados para o deserto, onde estão abrigados em campos de refugiados. De acordo com nossas investigações, esses grupos étnicos continuam sendo atacados mesmo dentro dos acampamentos. As forças de Al-Bashir se servem de três armas contra os 2,5 milhões de refugiados: estupro, fome e medo. Eles são confinados em locais onde não há água nem comida, e as milícias impedem que grupos humanitários da ONU lhes forneçam alimentos. Estima-se que 300 000 pessoas já tenham morrido. Estamos acusando Al-Bashir de ser o responsável por crimes contra a humanidade, crimes de guerra e genocídio.
Veja – O tribunal já havia emitido o mandado de prisão para Ahmed Haroun, o ex-ministro do Interior do Sudão que coordenava os ataques, mas até hoje não conseguiu tirá-lo do país. Como fazer para prender o presidente Al-Bashir?
Ocampo – Caso os juízes do tribunal confirmem as acusações contra Al-Bashir, vamos pedir ao governo do Sudão que execute a prisão do presidente. Se o governo do país se negar a entregá-lo, o Conselho de Segurança das Nações Unidas, que determinou a investigação feita pelo TPI, terá de instrumentar as medidas diplomáticas correspondentes para obrigá-lo a agir. Por ser nosso primeiro caso com um genocídio ainda em curso, teremos uma tarefa inédita: definir a forma como a comunidade internacional vai combater a prática do genocídio.
Veja – Quais são as penas possíveis para os acusados pelo tribunal?
Ocampo – O tribunal pode decidir pela prisão perpétua ou por penas menores, de até trinta anos. Por acreditar que nossos casos vão além da criminalidade comum, eu sempre busco uma condenação próxima da pena máxima. Punições brandas não são satisfatórias para crimes como os de Al-Bashir.
Veja – Por que o Tribunal Penal Internacional está interessado nos crimes praticados pelos narcotraficantes na Colômbia?
Ocampo – As Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as Farc, e os grupos paramilitares efetuam ataques massivos e indiscriminados contra a população civil. Esse tipo de delito pode ser considerado crime contra a humanidade. Dessa forma, está sob a jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Ainda estamos na fase dos exames preliminares que antecedem, obrigatoriamente, qualquer investigação. Como promotor-chefe, analiso as informações fornecidas pelo governo colombiano e faço visitas ao país. Estive na Colômbia em novembro e tive a oportunidade de conhecer vítimas, juízes e o presidente Álvaro Uribe. Estou monitorando os processos judiciais colombianos contra os grupos paramilitares e as Farc.
Veja – Documentos encontrados nos computadores de um dos chefes das Farc capturados pelo exército colombiano indicam que o grupo recebe a ajuda de países vizinhos, em especial da Venezuela e do Equador. Essas conexões também podem ser investigadas pelo tribunal?
Ocampo – Aqueles que dão apoio financeiro às Farc compartilham da intenção de cometer os delitos praticados pelo grupo. Por isso, podem ser considerados participantes em crimes contra a humanidade. O apoio político a um grupo como as Farc igualmente pode ser considerado um delito e, dependendo das circunstâncias, passível de ser investigado pelo país ou pelo TPI. Estamos avaliando agora o caso de grupos ou pessoas de fora da Colômbia, tanto da América do Sul quanto da Europa, que aparentemente apóiam as Farc. Queremos saber se é o caso de iniciar um processo. Por enquanto, só o que eu posso dizer é que estamos coletando informações sobre esse tema.
Veja – Desde sua criação, o TPI iniciou processos sobre crimes cometidos em quatro países, todos da África. Não há risco de a instituição passar a ser vista como o Tribunal Penal Africano ou o Tribunal dos Países Pobres?
Ocampo – O Estatuto de Roma estabelece que o promotor só pode intervir em casos nos quais o estado não esteja atuando para fazer justiça ou em que os processos em andamento não sejam confiáveis. Um exemplo são os atentados terroristas no metrô de Madri, em 2004, que podem ser considerados crime contra a humanidade. Visto que os juízes espanhóis agiram prontamente, eliminou-se a necessidade de intervenção do TPI. Quando assumi o cargo de promotor, em 2003, precisava escolher os casos pela gravidade dos crimes. Os dois mais sérios dentro da minha jurisdição haviam sido cometidos na Colômbia e na República Democrática do Congo. Como o governo colombiano tem processos judiciais em andamento contra os paramilitares e contra os guerrilheiros, não havia a necessidade, naquele momento, de entrarmos em ação. Escolhi investigar e processar os crimes no Congo porque o país não tinha a possibilidade de fazer justiça por seus próprios meios. O mesmo aconteceu em Uganda. O TPI não precisa ter casos no mundo todo. Basta que, após a escolha de um caso, todos nos apóiem nas investigações.
Veja – Como o TPI decide quem será processado?
Ocampo – O tribunal pode funcionar de três maneiras. Na primeira, posso receber solicitações dos próprios países, como aconteceu na República Democrática do Congo, em Uganda e na República Centro-Africana. Na segunda, o promotor – no caso, eu – inicia um processo por conta própria, desde que os juízes do tribunal aprovem. A terceira possibilidade é que o Conselho de Segurança da ONU mande um caso para mim, como aconteceu com a investigação em Darfur, no Sudão. Essa última é a única forma de o tribunal investigar um crime num país que não tenha assinado o Estatuto de Roma, como é o caso do Sudão. Em todas as situações, sou eu quem decide se as acusações serão ou não levadas adiante.
Veja – Estados Unidos, China e Rússia são alguns dos países que não assinaram o Estatuto de Roma. É possível manter um Tribunal Penal Internacional sem a participação de grandes potências?
Ocampo – Não só é possível como isso já está acontecendo. Quando fui chamado para trabalhar no tribunal, em 2003, um amigo me disse: "Obviamente é uma honra enorme ser promotor, mas você deve recusar o cargo. Será pago para ficar nove anos em Haia sem fazer nada. Sem o apoio dos Estados Unidos, não se poderá investigar nem prender ninguém". Hoje, cinco anos depois, a promotoria do tribunal conseguiu investigar e emitir ordens de prisão em todos os casos que abriu. Já prendemos quatro pessoas. A última, em maio, foi o ex-vice-presidente e atual senador congolês Jean-Pierre Bemba, capturado em Bruxelas. O tribunal está operando, e nosso trabalho tem impacto no mundo.
Veja – Como o senhor avalia a posição dos Estados Unidos, que se opõem a participar do TPI e, por extensão, a se submeter a ele?
Ocampo – Cada país tem o direito de tomar a própria decisão. Outras nações da América do Norte, o México e o Canadá, e todos os países da América do Sul estão representados no tribunal, exceto o Chile, que ainda está em processo de adesão. O Brasil não apenas assinou o Estatuto de Roma como uma das juízas mais ativas do tribunal em Haia é a paulista Sylvia Helena de Figueiredo Steiner. Acredito que, em algumas décadas, todos os países farão parte do tribunal. Ninguém pode ser contra a punição de genocídios.
Veja – O tribunal é o herdeiro dos julgamentos de Nuremberg, que condenaram carrascos nazistas após a II Guerra?
Ocampo – O Tribunal de Nuremberg, em 1945, foi um marco na história jurídica mundial. Dois outros sistemas jurídicos internacionais foram criados nas últimas décadas. Durante a Guerra dos Bálcãs, em 1993, o Conselho de Segurança da ONU criou o Tribunal Criminal Internacional para a ex-Iugoslávia, que julgou o ditador sérvio Slobodan Milosevic. No ano seguinte, foi criado outro tribunal para sentenciar os culpados pelo genocídio em Ruanda. A diferença é o caráter provisório dessas três cortes. O Tribunal Penal Internacional é o primeiro sistema de justiça permanente. A partir de agora, temos uma base jurídica para todo o mundo, o Estatuto de Roma. É um texto pequeno, que abrange apenas os crimes de guerra, o genocídio e os crimes contra a humanidade.
Veja – Por que apenas três crimes?
Ocampo – O fato de apenas três delitos estarem contemplados no Estatuto mostra a dificuldade de chegar a consensos. A idéia de um tribunal internacional é muito antiga. Já no século XIX, o fundador da Cruz Vermelha, Gustave Moynier, defendia a necessidade de um órgão dessa natureza. Ele dizia que os estados não aplicavam as leis da guerra, pois não tinham interesse em castigar seus próprios soldados. O Estatuto de Roma afirma que os chefes dos estados signatários também devem estar submetidos à lei penal. A Noruega, para se afiliar ao tribunal, teve de reformar a Constituição para que o rei se sujeitasse às leis nacionais. Há países que se negaram a promover tais reformas. Esse é o motivo pelo qual, infelizmente, não temos todos os países sob a jurisdição do TPI. É uma pena, pois a lei é a única ferramenta que temos para controlar os crimes contra a humanidade.
Veja – O senhor participou da promotoria que condenou cinco generais da junta militar argentina, em 1985. Cinco anos depois, os generais foram indultados pelo então presidente Carlos Menem. Seu trabalho foi em vão?
Ocampo – Esse episódio transformou a Argentina. Foi a primeira vez desde o Tribunal de Nuremberg que os principais responsáveis de um governo militar estiveram sob julgamento. Naquele momento, os argentinos tomaram consciência dos crimes cometidos pelo regime. Após uma rebelião militar que se seguiu ao julgamento, meu pai participou pela primeira vez na vida de uma manifestação pública em defesa da democracia. Ele tinha 80 anos. O julgamento dos militares é a pedra fundamental da nova Argentina e é uma pena que tenha sido estragado pelos indultos. Mesmo assim, acredito que o julgamento teve um grande impacto: mostrou quanto é difícil fazer justiça nesses casos. Pessoalmente, sempre achei que esse seria o ápice de minha carreira de advogado. Agora vejo que foi apenas um treinamento para o meu cargo de promotor do TPI.
Veja – Os países latino-americanos agiram corretamente em relação aos crimes cometidos pelas ditaduras militares?
Ocampo – Não há dúvida de que a região tentou fazer justiça. Os processos argentinos contra os militares continuam até hoje. Acredito que a América Latina liderou um processo: o de usar a lei para lidar com o passado. Essa tendência, que começou nos anos 80, foi uma revolução legal. Vejo o TPI como uma continuidade desse projeto. Não por acaso, os representantes da América Latina estiveram entre as principais lideranças nas discussões sobre o Estatuto de Roma.
Veja – Algumas pessoas querem rever a lei de anistia brasileira e processar militares envolvidos em torturas. O senhor acha que revê-la hoje, mais de duas décadas depois do fim da ditadura, seria uma boa medida?
Ocampo – Não posso opinar sobre esse tema como promotor do tribunal, mas posso falar de minha experiência pessoal. Na Argentina, o julgamento dos militares ajudou a desqualificar certas práticas violentas, como o uso da tortura. A cientista política americana Kathryn Sikkink, da Universidade de Minnesota, fez estudos interessantes sobre os países da região que tentaram julgar os militares. Ela mostrou que as investigações de crimes do passado contribuíram para a redução dos níveis de violência e de incidência de casos de tortura por parte dos agentes das forças de segurança hoje. Sei que o Brasil resolveu seus temas políticos com relação à ditadura, mas não tenho informações sobre a conduta dos policiais do país. No geral, a lei é a melhor forma de lidar com a violência, mas cada estado deve resolver seus problemas à sua maneira.
Veja – Quando essas feridas serão totalmente curadas?
Ocampo – Para quem perdeu o pai ou o filho durante a ditadura, elas nunca cicatrizam. O que não nos impede de tentar fazer a reparação às vítimas da melhor maneira possível. A sociedade como um todo pode se recuperar. Quando eu investigava os militares argentinos, em 1985, não conseguia convencer minha mãe de que um dos réus, o general Jorge Rafaél Videla (presidente da Argentina entre 1976 e 1981), era culpado. Venho de uma família militar, meu avô era militar e minha mãe freqüentava a mesma igreja que Videla. Ela o adorava e reprovava meu trabalho. Quando começou o julgamento e minha mãe escutou o depoimento das vítimas, mudou de idéia. Duas semanas depois, ela me disse: "Ainda gosto do general Videla, mas entendo que há razões para prendê-lo". Os julgamentos ensinam. As pessoas aprendem.