Por seu significado, por suas circunstâncias e pelas virtudes da personagem, a libertação de Ingrid ultrapassa em muito as fronteiras colombianas. A ex-candidata à presidência da Colômbia se inscreve na história latino-americana como uma poderosa fonte de símbolos positivos. Símbolos capazes de representar o desejo e a possibilidade de existência de sociedades abertas e realmente democráticas, em que a força dos argumentos possa prevalecer sobre o argumento da força e homens e mulheres possam realizar as suas escolhas com maior liberdade e autonomia.
Na história da região, os símbolos políticos mais potentes apontam, no geral, na direção inversa. O exemplo maior é o de Ernesto Guevara, personificação do herói romântico revolucionário. Imbuído de uma ideologia totalitária em que o indivíduo conta pouco ou nada, ele a traduz numa prática revolucionária, alguns dirão aventureira, em que a violência tem lugar central. Não apenas como meio supostamente legítimo para a construção da "sociedade justa" e do "homem novo", mas também na construção da mística do militante revolucionário devotado à realização da "causa".
É radical o contraste com a simbologia encarnada por Ingrid Betancourt, em que se destacam os valores da liberdade e da não-violência. Capturada em meio à disputa de eleições para o cargo máximo de seu país - eleições que são o mecanismo que as democracias inventaram para promover, em substituição à força, a alternância no poder -, submetida à privação de todas as liberdades por uma guerrilha degenerada em bando terrorista, com vinculações com o narcotráfico, ela conseguiu resistir a toda sorte de violências. E foi libertada pela ação de um governo democraticamente eleito.
Além de um símbolo democrático, Ingrid Betancourt é um símbolo da conexão positiva da América Latina com o resto do mundo. O mito de Che é inseparável da idéia segundo a qual a história da região é uma espécie de eterna repetição das relações de submissão colonial que marcaram a sua conexão primeira com o sistema internacional. É parte integrante dessa narrativa a noção de que as "elites" estão desinteressadas da sorte do "povo" e comprometidas com interesses estrangeiros, inconciliáveis com os interesses nacionais.
Uma versão dessa narrativa, muito presente na retórica de um Hugo Chávez ou de um Evo Morales, dá ênfase especial ao componente étnico-racial, valorando grupos e atores políticos e sociais conforme os seus "antecedentes sociobiológicos", um traço freqüente em todas as ideologias não-democráticas. Na retórica de ambos os presidentes, embora com diferenças entre eles, há uma comum desvalorização da herança européia de "nuestra América". Colombiana criada na França e retornada a seu país para se engajar na vida política, Ingrid Betancourt chama a atenção para a estupidez que é classificar o mundo e as pessoas em função de supostos critérios étnico-raciais. Não deve passar despercebido, ainda, o fato de ser uma mulher numa região machista. Uma mulher divorciada que se engajou na política sem precisar de um marido ou de um pai.
Há muito, portanto, o que comemorar. Mas subsistem problemas, como sempre.
O revés sofrido pelas Farc - o mais severo de uma já longa seqüência que vem debilitando a guerrilha cada vez mais - não resulta na pacificação imediata da Colômbia. Há ainda passos a dar nessa direção, assim como na desmobilização dos grupos paramilitares de direita, processo que já se encontra bem mais avançado. Por maior que seja o enfraquecimento militar das Farc, algum tipo de negociação poderá ser necessário para assegurar a normalização da vida política e social naquele país. Como mostra a experiência da América Central, a assimilação de ex-guerrilheiros à sociedade é um processo longo e complicado, tanto mais quando são tantas e tão atraentes as oportunidades oferecidas por atividades ilícitas no universo cada vez mais globalizado da criminalidade comum organizada. Não é bom esquecer, a propósito, que a Colômbia continua a ser um centro produtor de drogas, o maior da América Latina, com uma área plantada de coca que cresceu nos anos mais recentes, depois de um prolongado declínio, e a despeito do apoio dos Estados Unidos à destruição das plantações. Em suma, erradicar a violência como marca característica da história colombiana é um objetivo que está sendo construído, mas ainda não foi conquistado.
O presidente Álvaro Uribe merece muitos créditos por isso. Soube entender a demanda da sociedade colombiana pelo fim da violência, compreendeu que um Estado que se quer democrático não pode conviver com um poder ilegal nem ceder-lhe território, liderou o combate às Farc com inteligência e obstinação, promoveu com coragem a desmobilização dos grupos paramilitares de direita, com os quais muitos de seus aliados, se não ele próprio, tiveram ligações diretas ou indiretas. Nada disso justifica as manobras jurídicas e políticas que vem articulando para mudar novamente as regras do jogo e disputar um t