Por que nada mais foi o mesmo depois do francês
Marcel Duchamp, que tem mostra em São Paulo
Marcelo Marthe
Arnold Newman/Getty Images |
Marcel Duchamp: a arte ao alcance de qualquer preguiçoso |
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Em 1917, depois que o artista plástico francês Marcel Duchamp se mudou de Paris para Nova York, sua irmã fez uma faxina em seu ateliê. O lugar era um muquifo: sapatos e travesseiros espalhavam-se pelo chão e os móveis viviam cobertos de poeira. Em meio à bagunça, ela se irritou com objetos que lhe pareciam inúteis, como uma pá pendurada no teto, um suporte de garrafas no meio do quarto e uma roda de bicicleta sobre uma banqueta. E não teve dúvidas: despachou tudo para o lixo. Assim se destruíram alguns baluartes da arte moderna. Tratava-se dos originais dos ready-mades, obras que transformariam Duchamp num dos dois artistas mais influentes do século XX – o outro foi o espanhol Pablo Picasso. Mas ele não deu importância à perda. Em vez disso, iniciou a produção de cópias em série dos mesmos objetos. Várias dessas réplicas estarão a partir desta terça na maior retrospectiva de Duchamp já realizada no Brasil. Promovida pelo Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, em comemoração do sexagésimo aniversário da instituição, ela reúne 120 peças vindas de acervos como o do Museu de Arte da Filadélfia, dono da maior parte do espólio do artista. É uma oportunidade para entender por que, como nota o historiador americano Peter Gay num livro lançado há pouco nos Estados Unidos, Duchamp é o ícone que resume o ideário modernista na arte – mais até que Picasso. "Outros artistas não-conformistas devotaram-se a reinventar o ofício, mas a empreitada de Duchamp tinha como alvo a abolição da própria arte", escreve Gay.
O ponto inicial da exposição são os ready-mades (algo como "prontos para uso") – e há uma boa razão para isso. Produzidos a partir de 1913, eles marcam uma guinada sem a qual Duchamp seria relegado ao rodapé dos livros de história da arte. Até então, ele tentava a sorte na pintura. Chegou a causar alvoroço com a tela Nu Descendo a Escada (1912) – mas isso mais pelo escândalo que esse nome provocou do que por alguma qualidade superior da obra. Duchamp tinha idéias notáveis. Mas, em matéria de técnica e talento para os pincéis, estava longe do virtuosismo de Picasso e outros contemporâneos. Aos 25 anos, abandonou a pintura e passou a investir nos ready-mades. O que não deixava de ser uma forma de contornar suas deficiências: ao transformar objetos do cotidiano em obras de arte, ele simplesmente eliminou a necessidade de um domínio genial da técnica. Seu maior esforço consistia em selecionar os objetos e depois lhes dar um nome e uma apresentação inusitados. Fazia parte das provocações de Duchamp alardear que, a partir de então, fazer arte estaria ao alcance de qualquer preguiçoso. Quando lhe perguntavam qual era sua profissão, ele respondia: "Sou um respirador". Era uma confissão de que o ócio constituía sua principal atividade. Ele passou boa parte da carreira sem produzir ou criando apenas variações de seus objetos – como as miniaturas dos ready-mades reunidas em valises que classificava como "museus portáteis". A certa altura, deixou a arte de lado para se dedicar ao xadrez (paixão, aliás, que o levou a morar por uns tempos em Buenos Aires).
AFP |
A Fonte: o artista tentou exibir o urinol numa mostra sob um pseudônimo. Foi vetado |
Duchamp foi, inegavelmente, um mestre da provocação. A forma como apresentou ao mundo os ready-mades é um exemplo. O mais famoso deles – o urinol invertido batizado por ele de Fonte – foi inscrito sob um pseudônimo num salão de arte do qual o próprio artista era um dos organizadores. Sua exibição foi vetada – o que levou Duchamp a abandonar o posto e denunciar a proibição com estardalhaço. Em 1919, ele voltou a despertar celeuma, ao rabiscar bigode e cavanhaque numa imagem da Mona Lisa, a obra-prima de Leonardo da Vinci, rebatizada com as iniciais de uma expressão francesa obscena, L.H.O.O.Q. Na mostra do MAM, podem-se ver réplicas dessas obras e também fotografias das intervenções de Duchamp em exposições de terceiros, que fazem dele um precursor da figura dos curadores de hoje. Ele criou um cenário para uma coletiva surrealista em Paris em que centenas de sacos de carvão pendurados no teto conferiam um efeito de caverna ao espaço onde ficavam as obras – os visitantes saíam de lá cobertos de poeira negra. As provocações do artista iam ainda do campo da ótica (a exposição traz itens como uma máquina cujo intuito era produzir ilusões visuais) ao da música (pode-se ouvir uma peça composta de forma aleatória, em que as notas se sucedem conforme o movimento das peças num tabuleiro de xadrez).
Ao lançar esses ataques às convenções artísticas de seu tempo, Duchamp tinha como maior objetivo fazer ruir a idéia de que a arte existe para ser admirada com os olhos – o que ele chamava de seu aspecto "retiniano". Para ele, a obra de arte deveria, antes de tudo, expressar um conceito intelectual. A extensão do estrago provocado por essa mudança de foco é bem conhecida. Daí derivaram a arte conceitual, a arte pop, as performances, as instalações e outras correntes contemporâneas. Com a agravante de que boa parte dos seguidores de Duchamp perdeu de vista um traço essencial do artista – o humor. Ainda que seja injusto responsabilizá-lo pelos embustes que se produziram a partir de suas idéias, não há dúvida de que foi ele quem pôs em circulação a noção de obra de arte que necessita de bula para ser decifrada. Ao final da mostra, fica a certeza de que Duchamp foi um artista que pensava muito à frente de seu tempo. Mas, ao contrário do que ocorre diante das grandes obras de arte (até mesmo contemporâneas), o espectador sai dela sem nenhum impacto visual ou emocional fora do comum. Como lembra o ensaísta inglês Paul Johnson, a boa arte é uma combinação entre a originalidade e a habilidade do artista. No primeiro quesito, a obra de Duchamp passa com louvor. Mas não no segundo. "Sem o toque único do artista, a arte passa a ser mera invenção. Não difere de um novo aparelho elétrico", escreveu Johnson. No caso de Duchamp, ela já saía de fábrica assim.