Entrevista:O Estado inteligente

domingo, julho 06, 2008

Daniel Piza

Shakespeare atropelado

sinopse

Daniel Piza, e-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br


Discordo do consenso já criado pela crítica de teatro a respeito do Hamlet de Wagner Moura, em direção de Aderbal Freire-Filho. Há muitos problemas de encenação, e o enorme talento de Moura se perde pelas decisões tomadas. A maioria da platéia chega já tendo ''adorado'' a montagem e, pelo jeito, a crítica carente de novos marcos históricos se deixa levar pela aclamação. Mas não estou sozinho quando digo que as poucas qualidades não compensam. Shakespeare é tão grandioso que permite múltiplas versões, mas o texto continua lá, pairando sobre cada uma delas com a autoridade de seu gênio.

Nada tenho contra, por exemplo, as roupas modernas, a linguagem coloquial e o uso do vídeo com telão ao fundo, para reforçar a obviedade de que o próprio teatro é um dos temas da peça. Mas essa insistência em filmar Moura por todos os ângulos parece dizer que esse é o tema central ou único e, pior, termina por causar o efeito oposto: em vez de mostrar que somos todos atores, serve para endossar o fato de que no palco está o maior ator de sua geração. Na noite em que vi a encenação, sexta retrasada, era aniversário de Moura e ao final ele foi brindado com faixa e canto de parabéns e a presença do filho no palco. Estava ali, acima de tudo, uma celebridade de sua geração.

A tradução tem muitos achados; flui, cria e até acrescenta trocadilhos, jogos de palavra que Hamlet gosta de praticar. Em momentos fundamentais, porém, ela deixa a desejar. No monólogo mais famoso da literatura, a frase ''thus conscience does make cowards of us all'' se tornou ''o pensamento nos faz covardes''. Pensamento e consciência não são exatamente a mesma coisa, e esta diferença era cara a Shakespeare; afinal, para Hamlet, a consciência nasce do medo do que vem depois da morte, ''the undiscovered country'' (o país indescoberto, melhor do que o ''desconhecido'' usado na montagem), e nos deixa oscilando entre pensar e agir, entre entender e enfrentar.

É exatamente essa oscilação que desaparece no Teatro da Faap. Os solilóquios parecem pausas no meio de uma grande e persistente gritaria. Moura berra e sapateia a cada cinco minutos; transpira e cospe aos cântaros; salta, corre, toca os outros efusivamente o tempo todo. Os momentos de reflexão ficam sem peso, ainda que em média ele saiba dizê-los. É claro que Hamlet é alguém que exagera sua suposta loucura para que assim possa levar adiante seu plano de ver estampada nos rostos de seu tio e sua mãe a verdade sobre a morte de seu pai. Mas ele seria o primeiro a lembrar que a loucura não se agita desse modo sem parar, até porque levantaria a dúvida dos outros sobre sua veracidade.

Assim, o que há de melancólico em Hamlet não permanece; ele desfila uma energia que não combina com isso. Para piorar, o restante do elenco não funciona. Tonico Pereira como o rei Cláudio não tem nada da pompa que Hamlet tanto satiriza, além de esquecer muitas passagens do texto e pronunciar ''bões'' e não ''bons''. A loucura de Ofélia, que serve de contraponto para que vejamos o método que existe na de Hamlet, se estende demais, numa colagem de canções brasileiras. E a dupla Rosencrantz e Guildenstern parece Oscarito e Grande Otelo, como se não pesasse a menor culpa sobre a traição ao amigo. A tragédia fica encoberta por uma vasta fumaça de piadas e trejeitos.

Essa necessidade de acentuar o humor e a ação da peça, talvez por medo de entediar a platéia com o texto elaborado e metafórico de Shakespeare, pode ser o ponto a partir do qual todo o conceito da encenação desmoronou. Fazer um Hamlet mais informal e acelerado, muito brasileiro em suas demonstrações afetivas, poderia dar certo. Mas quando vemos que na parte final da montagem os atores já nem olham um para o outro enquanto falam, intermediados pelo vídeo, nos damos conta de que teatro sem conversa - ''uma tábua e duas paixões'' - perde a luz, mesmo que tenha o movimento. Achar o ponto é tudo.

CADERNOS DO CINEMA

De historinhas de superação de doenças, com palavras como ''milagre'' e muito convite às lágrimas, o cinema está cheio. Em O Escafandro e a Borboleta, de Julian Schnabel, acompanhamos a de Jean-Dominique Bauby, editor da revista Elle, que tem um acidente vascular e fica paralítico, vítima de uma síndrome, ''locked-in'', que o deixa trancafiado em si mesmo. Um dos olhos é costurado, o que vemos de dentro. O outro vai ser toda sua comunicação com o mundo: por meio dele diz sim ou não - uma piscada ou duas - e escolhe as letras que lhe são lidas por uma linda fonoaudióloga, enquanto outra profissional tenta ensiná-lo a mexer a língua o suficiente para engolir alimentos. Gradualmente vamos assim, até o ponto em que Jean-Do (o ótimo Mathieu Amalric) consegue escrever um livro inteiro sobre sua história.

No entanto, Schnabel - um pintor que foi muito famoso, mas, limitado, não conseguiu escapar à fama - parte desse livro e, coisa rara no cinema, faz um filme melhor. Um grande filme. Primeiro, porque o uso da câmera subjetiva é extraordinário. Olhamos a maior parte das cenas do ponto de vista de Jean-Do, partilhando um pouco de seu estado aflitivo, aprisionado. Só saberemos de sua história mais adiante, sem aquela alternância hollywoodiana com flash-backs emotivos: ele é um playboy de 43 anos, boa-praça, descrente, mas frustrado com seus relacionamentos pessoais e mesmo sua carreira, etc. Schnabel conta o necessário para nos situar, concentrando a narrativa no hospital.

Segundo, o filme tem uma criatividade visual tão apurada que nem conseguimos registrar tudo. A maneira como os focos de sua visão variam; a seqüência em que seu rosto se projeta no espelho ao lado da foto de seu pai (Max Von Sydow, em aparição tocante); seus exercícios de imaginação para ir além da paisagem diante da qual fica quase vegetando; a plástica de algumas imagens, como a da geleira que desmorona; sua mistura de tristeza e alegria diante dos filhos com quem não pode brincar - tudo resulta numa experiência cinematográfica que transcende a ''mensagem'' redentora, ao mesmo tempo que nos emocionamos tremendamente. Desse grau de liberdade formal, sem truques clássicos de roteiro nem apelo sentimental, o cinema não está cheio.

DE LA MUSIQUE

Entre a expressividade aberta de Elis Regina e a contenção expressiva de João Gilberto, e com um fraseado aprendido das grandes cantoras de jazz, de Sarah Vaughan a Blossom Dearie, o canto de Rosa Passos é dela e ninguém mais. É por isso que ela pode interpretar em seu novo CD, Romance, canções célebres como Eu Sei Que Vou te Amar e Atrás da Porta sem que o ouvinte termine fazendo comparações com as versões existentes. Ela expande ou acelera fonemas, brinca harmonicamente com a melodia como se fosse um instrumento de cordas, retarda o andamento para destacar as sutilezas emocionais de cada parte da canção. Há muito swing por baixo da lentidão aparente.

Note como ela não precisa levantar a voz para passar todo o drama e o erotismo de Tatuagem, outra das três canções de Chico Buarque (ao lado de Cadê Você, parceria dele com João Donato) que felizmente incluiu no CD. É uma versão de 7 minutos e 32 segundos, quase como a que fez de Sentado à Beira do Caminho, de Roberto Carlos, no CD de 2006, Rosa. Ela também interpreta Caymmi, Ivan Lins, Djavan, Tom Jobim e outros. Por sinal, os instrumentistas e os arranjos - do pianista Fabio Torres, do baixista Paulo Paulelli ou do violonista Lula Galvão - são outro destaque. Em Por Causa de Você, de Tom e Adilea da Rocha Macedo, o diálogo de Rosa com o piano de Fabio Torres e o sax de Vinícius Dorin é memorável, uma cozinha digna dos bons tempos da agora cinqüentenária bossa nova.

POR QUE NÃO ME UFANO

Demoraram, mas enfim perceberam que os dados divulgados por institutos atrelados ao governo como o Ipea não são divulgados sem ''recortes'' interpretativos. É como se todos os índices positivos da atualidade fossem produto de fatores surgidos depois de 2003. Mas basta olhar com calma os dados de renda para ver que a média brasileira continua empacada na faixa dos últimos 15 anos. Veja também o caso da formalização de vagas de emprego medida pelo Caged, invariavelmente anunciada como ''criação de empregos''.

Já o índice oficial de inflação, o IPCA, continua muito abaixo de todos os outros, como o IPC e o IGP-M. Que a cesta básica tenha subido 52% em 12 meses é um alerta laranja, no mínimo. Mas o governo diz que não passa de ''alarmismo'', que foi a inflação mundial que subiu um pouco. Então tá: quando as coisas vão bem, o mérito é do governo, não da conjuntura internacional; quando vão mal, a culpa é do mundo. E tome juros altos!



''Filme de Schnabel é uma experiência cinematográfica que nos emociona tremendamente''

''A tragédia de Hamlet fica encoberta por uma vasta fumaça de
piadas e trejeitos''


Aforismos sem juízo
Toda lucidez pede penumbra.

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