O mundo, porém, vive dando voltas e eu, que gostava de ficar aqui descrevendo as manobras dos bem-te-vis e das rolinhas no terraço e contando a vocês umas lorotinhas lá de Itaparica, acabei virando, aos olhos talvez da maioria, cronista político. E talvez não possa queixar-me dos que hoje exigem uma coluna descendo o pau no governo toda semana, acho que acabei por acostumá-los mal. Mas a realidade é que não só não virei cronista político como, verdade mesmo, não gosto de reclamar e criticar o tempo todo, não quero ficar conhecido como um chato que vive escrevendo para baixar o astral do leitor, uma espécie de vingador de quarteirão. Nem mesmo me agrada muito viver falando mal do governo. Imprensa - diziam meus velhos mestres de redação, no tempo em que não havia escolas de jornalismo - não é para elogiar governo, é para esculhambar governo, aprenda isso, com o tempo você vai entender. Ainda penso como esses velhos mestres, mas no sentido muito amplo que queriam dar à voz popular que enxergavam na imprensa. E - por que não dizer? - às vezes me chateia um pouco o número de pessoas que querem ser Tiradentes, mas com meu pescoço.
Ao contrário do que pensam, tenho freqüentemente raiva, exasperação e outros sentimentos negativos em relação ao presidente Lula, mas me atribuem preconceito e ódio, o que, se podem acreditar em mim, não tenho mesmo - e consulto minha consciência. Preconceito eu consegui, com bastante sucesso, ir desbastando e eliminando, ao longo da vida, os que herdei culturalmente e me creio suficientemente imunizado. E ódio não tenho de ninguém, muito menos do presidente. Não acreditam, mas, como já disse, votei nele para o primeiro mandato e o defendi aqui no começo (e disto o que escrevi é testemunha), mesmo quando já me pediam para criticá-lo. Mas aí a situação do País foi mudando e passei a exercer esse papel quase que involuntariamente assumido.
Mas que sem-vergonha, estarão certamente a dizer os que não vão com a minha cara ou não gostam mesmo de mim. Já está preparando terreno para amolecer suas críticas desvairadas, ir aderindo e engolindo o que escreveu. Agora que o País vai bem, a popularidade de Lula continua nos píncaros e o mar é de almirante, ele não tem mais o que dizer, vai ser obrigado a se arrolhar. Aí, para não ter que desdizer-se e sair ainda de mais besta do que já é, começa a armar sua estratégia para os novos tempos.
Hipótese interessante, sem dúvida, mas, consterna-me informar aos descontentes, destituída de fundamento. Em relação ao presidente, continuo achando que ele enganou a mim e a muitos, que veio para reformar (eu não escrevi revolucionar, o que muitas vezes me atribuem) e não reformou nada, que não gosta de trabalhar e não sabe governar e que sua gestão pode não parecer no momento, mas é das piores ''da história deste país''. E, quanto às mudanças, continuamos pagando mais impostos do que sueco para não receber nada em troca. Imposto aqui serve para custear o Estado e ser furtado, sobrando muito pouco (leve-se em conta também a propinagem) para beneficiar o povo. Paga-se imposto para ter saúde e quem quiser saúde e tiver juízo, além de bastante dinheiro, que pague um seguro-saúde privado. E quem quiser educação que também pague e quem quiser segurança idem idem e por aí vai.
Não vejo nada de mudança. Vejo a miséria anestesiada com programas assistencialistas, populistas e verdadeiras bombas-relógio soltas por aí, vejo áreas do Rio de Janeiro onde o presidente não pode entrar, a não ser escoltado formidavelmente, como um marechal em batalha, o governador não pode entrar, o prefeito não pode entrar, vocês e eu não podemos entrar e acabou-se. A soberania, o monopólio da violência e mesmo o poder judicante não são mais exclusividade do Estado, que vai sempre perdendo terreno. Um Brasil se esfacelando, não só aqui como na Amazônia, da qual sugiro que a presente geração vá se despedindo, porque a autodeterminação dos povos vem aí e esses povos, alguns dos quais não vão além de centenas de indivíduos, naturalmente querem apito e preferirão mil vezes ser protetorados americanos (perdão, Estados sob a supervisão das Nações Unidas) a continuar brasileiros, pois que ser brasileiro não dá apito a ninguém.
É verdade, mas lembro que não assumi o compromisso de ficar blaterando contra o governo e que me reservo o direito do cronista de escrever sobre o que quer, ou o que acha que vai sair melhor, na ocasião. E, para mim, com 50 anos de jornal nas costas, modéstia à parte, isto não apresenta dificuldade alguma. Vocês mesmos não viram como hoje me dediquei a dar uma explicação a vocês e não a falar mal nem do presidente nem do governo? É mole.
''Alguns povos só querem apito e preferem mil vezes ser protetorados
americanos''
''Nem pensar em continuar a ser brasileiros, pois isso não dá apito a ninguém''