O Globo |
5/10/2007 |
A confirmação pelo Supremo Tribunal Federal de que os mandatos parlamentares pertencem aos partidos políticos, canais entre a sociedade e o Estado indispensáveis ao processo político, na definição do ministro Celso de Mello, tem o condão de promover uma revolução na representação partidária, não importando nem mesmo que todos os "trânsfugas" consigam escapar da perda de mandato, seja pela data em que passará a valer a nova jurisprudência da Corte, seja por um processo de defesa tão amplo e burocrático que lhes dê tempo de disputar novas eleições sem perder o atual mandato. O importante é que o Supremo mudou de posicionamento e colocou os partidos indispensáveis à "base das instituições liberais", conforme definição de Maurice Duverger. O importante é que a partir da decisão de ontem, os partidos ganharam um novo status na política nacional, e todos os políticos pensarão duas vezes antes de mudar de legenda. Melhor ainda, antes das próximas eleições, pensarão duas vezes para escolher o partido pelo qual disputarão a eleição, pois a ele ficarão atrelados com uma perenidade que era desconhecida até então pela classe política brasileira de tempos recentes. A "transmigração partidária" tão intensa, juridiquês para o popular troca-troca partidário, é fenômeno relativamente recente na história política brasileira, sinal de que os partidos políticos depois da redemocratização ainda não se consolidaram como legítimos canais representativos de programas ou ideologias. O ministro Celso de Mello citou um pronunciamento de 1838 de Bernardo Pereira de Vasconcellos, onde ele, justificando a mudança de partido, afirmava não ser "um trânsfuga", e explicava sua "transmigração" por uma necessidade de, para "servir à pátria", lutar contra o excesso de liberalismo que um dia defendera. É verdade que alguns ministros chegaram a seus votos descrevendo um país irreal, ou ideal, no qual o eleitor escolhe seu candidato primeiro pensando no partido político. Num país em que se proclama que o eleitor vota no candidato, e não no partido, e mesmo assim pesquisas de opinião mostram com consistência que cerca de 70% dos eleitores não se lembram em que votaram na última eleição, seria uma ingenuidade achar que esse eleitor vota pensando no partido político. O fato de que a legislação exige que o número do partido seja o início do número dos candidatos indica apenas uma atitude mecânica do eleitor. Apenas os votos na legenda partidária poderiam ser considerados os em que o eleitor escolheu o partido apenas, e não este ou aquele candidato. Mas esses votos se limitaram a cerca de 15% nas últimas eleições proporcionais em todos os níveis no país. De qualquer maneira, é com decisões como a de ontem do Supremo que se fazem partidos fortes, e as conseqüências da ratificação da decisão do TSE de que o mandato pertence ao partido e não ao candidato serão tão fortes quanto seriam as da implantação da cláusula de barreira. Os pequenos partidos perderão seu poder de atração de políticos já na formação da nominata para a disputa das eleições, e deixarão de ser objeto de negociação política dentro do Congresso, com o tempo tendendo a perder a representação no Congresso por inviabilidade eleitoral. Também o programa partidário ganhará mais importância na discussão da filiação partidária. Definições como as apresentadas por diversos ministros, afirmando que a troca partidária sem motivo justo viola o próprio resultado das urnas, frauda a vontade dos eleitores e deforma a própria ética do governo são fundamentais para dar um novo caráter ao ato de filiação partidária. A definição de "razão justa" para a mudança partidária ganhará relevância. Um parlamentar que sair do partido alegando que ele mudou sua ação programática, ou aderiu ao governo quando fez campanha na oposição, poderá entrar em outro partido que considerar que melhor o representa e ainda dar a essa atitude um aspecto de relevância política que hoje a troca por interesses meramente pessoais vulgarizou. Também as direções partidárias terão que se precaver para não serem acusadas de "perseguição odiosa" ou abuso de poder. Outro aspecto relevante é que, embora a consulta ao TSE se refira a candidatos proporcionais, e por isso a decisão do Supremo atingirá deputados federais, estaduais e vereadores, muitos juízes declararam em seus votos, como foi o caso da ministra Cármen Lúcia, que o partido é elemento essencial para que alguém seja votado, deixando a entender que, seja ele candidato proporcional ou majoritário, seu mandato pertence à legenda pelo qual se apresentou ao eleitor. O fato de essa tese genericamente ter aparecido em diversos votos demonstra que não é líquido e certo que os candidatos majoritários não são atingidos pela nova jurisprudência do Supremo. Caso diversos senadores, como se cogita, pretendam deixar partidos de oposição para engrossar a bancada governista a fim de aprovar a CPMF, é possível que os partidos possam fazer uma consulta específica sobre candidatos majoritários, tentando incluí-los na decisão do Supremo de ontem. Caminhamos, através da interpretação da Constituição com base na realidade social em que os partidos políticos atuam, como ressaltou o ministro Carlos Alberto Direito, para uma reorganização da vida política brasileira que deveria ter sido feita por uma reforma política do Congresso. Amarrado por interesses corporativos e fisiológicos, deputados e senadores não conseguem chegar a uma fórmula que dê a nosso sistema político-eleitoral uma estabilidade que garanta sua credibilidade diante da opinião pública. O Supremo, embora os juízes não devam estar sujeitos a ela, como ressaltou o ministro Direito, refletiu o anseio da sociedade com a decisão moralizadora |
Entrevista:O Estado inteligente
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