A história do xadrez mostra por que o jogo se tornou uma
metáfora poderosa para quase toda atividade humana
Jerônimo Teixeira
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O filho único de uma rainha da antiga Índia morreu assassinado, e nenhum súdito tem coragem de informá-la de que o trono já não tem herdeiro. Um filósofo é chamado para resolver o impasse. Sua solução vem na forma de um tabuleiro quadrado, dividido em 64 quadrados menores, e 32 figuras entalhadas em madeira – as peças de um novo jogo, o xadrez, cujo objetivo é levar o rei à morte no xeque-mate. O filósofo joga uma partida com um discípulo diante da rainha. Quando o jogo chega ao fim, com um dos reis caídos, ela compreende: "Meu filho está morto". Essa velha lenda sobre a origem do xadrez revela uma das características mais intrigantes do jogo: o movimento regrado das peças nos limites geométricos do tabuleiro parece capaz de representar as realidades mais caóticas do mundo exterior, como o assassinato de um príncipe. Para os interessados em entender essa riqueza simbólica do xadrez, O Jogo Imortal (tradução de Roberto Franco Valente; Jorge Zahar; 312 páginas; 49 reais), do jornalista americano David Shenk, é uma bela introdução, ao mesmo tempo fascinante e acessível.
Com regras um tanto diferentes das atuais – algumas peças se moviam mais lentamente –, o xadrez surgiu por volta do século V ou VI, provavelmente na Pérsia (atual Irã). No século VII, a Pérsia foi incorporada ao império islâmico, que divulgou o jogo por seus vastos domínios. E foi daí que ele chegou à Europa medieval. Um tratado moral do monge Jacobus de Cessolis, no século XIII, tornou-se muito popular ao utilizar as peças do xadrez como alegoria da sociedade medieval. Aliás, as peças que se usam ainda hoje seguem fiéis ao imaginário da Idade Média: peão, torre, cavalo, bispo, rainha e rei. No entanto, o xadrez, com suas propriedades racionais, foi o jogo preferido de iluministas como Voltaire. Benjamin Franklin recomendava o jogo para fixar valores morais e intelectuais como a perseverança e a precaução. O xadrez, portanto, serviu igualmente aos moralistas medievais e aos fundadores da revolucionária república americana.
Há algumas razões objetivas para que o xadrez tenha se universalizado como metáfora ou matriz para as mais diversas atividades (veja o quadro na pág. ao lado). O resultado de uma partida depende exclusivamente da habilidade dos jogadores. Trata-se, portanto, de um jogo que exalta o livre-arbítrio, e não o acaso ou destino, como os dados. Também é uma disputa transparente, em que toda a informação necessária para chegar à vitória está colocada à vista de ambos os contendores – ao contrário do pôquer, em que impera o blefe. E, a despeito dessa clareza, é um jogo cujas propriedades matemáticas apontam para o infinito: depois de apenas quatro lances, o número de configurações possíveis no tabuleiro chega a 315 bilhões – e até o fim da partida salta, em progressão geométrica, para os trilhões de trilhões de trilhões. Em O Sétimo Selo, filme do sueco Ingmar Bergman, um cavaleiro joga xadrez com a Morte. Não poderia disputar outro jogo: o xadrez é um flerte com o infinito.
Em casos extremos, é também um namoro com a loucura. O Jogo Imortal documenta vários casos de campeões do xadrez que se viram assolados pela doença mental. O austríaco Wilhelm Steinitz, cujo estilo "científico" foi inovador no século XIX, chegou a dizer que jogara xadrez com Deus – e ganhara. Teve de ser internado em um asilo para doentes mentais. O caso mais famoso da loucura do xadrez é o americano Robert Fischer, que venceu sua primeira partida profissional aos 13 anos, em 1956. Desde cedo devotado exclusivamente aos mais intricados problemas enxadrísticos, Fischer tinha dificuldades em manter uma conversa que não versasse sobre xadrez. Em 1972, tornou-se o primeiro americano a conquistar o campeonato mundial, quebrando a hegemonia dos soviéticos. Mas, depois da vitória histórica sobre o russo Boris Spassky, Fischer retirou-se da vida pública e não quis competir para manter o título mundial. Sua crescente instabilidade emocional chegou ao limite da paranóia. Em 11 de setembro de 2001, logo depois dos atentados nos Estados Unidos, concedeu uma entrevista a uma rádio das Filipinas para manifestar, em discursos nervosos e torrenciais, seu apoio aos terroristas.
Ainda não existe uma teoria convincente para explicar o grande número de malucos entre os gênios do xadrez. Mas é seguro dizer que o xadrez por si só não causa doenças mentais. David Shenk afirma, ao contrário, que o jogo traz vantagens para os diletantes (como ele mesmo). Seria um método sem igual para desenvolver o raciocínio abstrato. A sugestão deve ser temperada por uma das tiradas céticas de Millôr Fernandes: "O xadrez é um jogo que desenvolve a inteligência pra jogar xadrez". A máxima vale até para a inteligência artificial: um grande marco nas pesquisas da área foi o Deep Blue, o primeiro computador a derrotar um campeão de xadrez, Garry Kasparov. E, de certo modo, explica o fascínio que o jogo sempre exerceu sobre escritores como Vladimir Nabokov e artistas como Marcel Duchamp. Como uma obra de arte, um jogo de xadrez é um universo auto-suficiente, contido em si mesmo – e que no entanto pode representar o mundo.
Fotos Eliot Elisofon/Time Life Pictures/Getty Images, Mike Segar/Reuters, Hulton Archive/Getty Images |