Gaudêncio Torquato
Um dia no Congresso Nacional causa forte impressão a almas sensíveis e insensíveis à política, a gregos e troianos. O clima é de azáfama. Milhares de servidores se apressam nos corredores carregando montanhas de papéis, misturando-se às caravanas que, em fila indiana, gritam palavras de ordem em manifestações organizadas por entidades. Nas comissões técnicas, parlamentares, entre eles perfis qualificados, debatem de maneira acalorada temáticas de alta prioridade, desfilam argumentos e números para, no fim, encaminharem as matérias aprovadas aos plenários das duas Casas, aos quais compete a palavra final. Até parece que estamos diante do quadro traçado por Alexis de Tocqueville, ao desembarcar, em maio de 1831, em solo americano, onde foi estudar o sistema penitenciário: “Vemo-nos no meio de uma espécie de tumulto e de todas as partes se eleva um clamor; mil vozes chegam ao mesmo tempo a nossos ouvidos, cada qual a exprimir algumas necessidades.”
Infelizmente, a constatação de que o oxigênio político inoculava as veias da sociedade, feita pelo autor de A Democracia na América, não ganha correspondência entre nós. Resta-nos a imagem do barulho democrático. E o paradoxo: o esforço parlamentar, que se estende no plenário da Câmara, às vezes noite adentro, não gera a produtividade desejável. O resultado de energias gastas, votações quilométricas, está aquém das expectativas, a configurar a perversa equação que estabelece os limites entre eficiência e eficácia. Os jogadores do Legislativo até podem ser considerados mestres na arte da argumentação e eficientes no drible retórico, porém são pouco eficazes naquilo que efetivamente interessa às platéias: fazer gol, ganhar a partida nem que seja por um a zero. As capacidades individuais, mesmo exibindo performance razoável, não causam sensação social. Daquele tenso ambiente se extrai um colírio que pinga em gotas nos olhos do povo.
Produtividade: este é o conceito-chave que falta ao corpo parlamentar. Antes de chegarmos aos números, expliquemos logo que produtividade não significa apenas quantidade de projetos apresentados e aprovados. Até porque as estatísticas mostram que o Brasil lidera o ranking mundial em matéria de fabricação legislativa. Temos 25 mil leis federais, 5 mil decretos-leis, mais de 1,5 milhão de atos normativos e centenas de resoluções da Câmara e do Senado, com validade de lei, além das medidas provisórias. Sob essa teia, cai bem na nossa cabeça a insinuação do chanceler Bismarck (1862-1890), quando insinuou que, “se as pessoas soubessem como se fazem as leis e as salsichas”, possivelmente não cumpririam as primeiras nem comeriam as segundas. No ano passado, aprovaram-se 178 leis ordinárias, das quais o Poder Executivo patrocinou 124, correspondentes a 24 projetos de lei, 59 medidas provisórias e 41 projetos de créditos suplementares, sendo o restante de responsabilidade do Legislativo (42) e do Judiciário, do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União (12). A quantidade de projetos apresentados é enorme, ultrapassando a casa dos 3 mil por ano. Em 1991, chegou-se a apreciar 8 mil projetos, o que denota o esforço individual. Não é pouco. Na planilha, dá para perceber que o Executivo é o maior legislador do País e, mais, que seguimos rigorosamente a prática dos sistemas parlamentaristas. Na Alemanha, por exemplo, mais de dois terços dos projetos de lei provêm do governo. Mas há uma explicação: lá o governo é estruturado sob o parlamentarismo e conta com ampla composição partidária. O mesmo ocorre no Canadá e na Inglaterra, onde praticamente os projetos apresentados pelo governo são aprovados em detrimento dos propostos por parlamentares isoladamente.
Já os EUA têm um modelo semelhante ao nosso, com um Parlamento dos mais ativos dos sistemas presidencialistas. O parlamentar defende os interesses do eleitor de seu distrito, mas não a ponto de contrariar direitos e deveres da comunidade global. Detalhe interessante: leis que afetam o bolso do consumidor nascem no Legislativo, e não no Executivo. Como no Brasil, o volume de projetos apresentados é alto, mas a proporção dos aprovados em relação aos apresentados gira em torno de 5%. Um aspecto fica bastante patente na fisionomia dos países de sólida democracia: as leis valem pelo peso da importância, tornando-se conhecidas, respeitadas, rigorosamente adotadas e, sobretudo, gerando resultados e fazendo convergir os interesses coletivos. Entre nós, o sentido universal até se faz presente em certa produção legislativa, mas, nos últimos tempos, projetos de lei de caráter reducionista, corporativo e distributivista ganharam fôlego sob a pressão de movimentos organizados. O resultado é transpiração demais e transparência de menos. O cipoal legislativo engrossa e as pessoas nem ficam sabendo o que está em vigor. A tarefa de consolidar a legislação federal, com enxugamento racional, é mera promessa. No meio da balbúrdia, toma corpo a judicialização da política. As Altas Cortes tentam pôr ordem na bagunça normativa.
Nesse ponto, volta à cena a produtividade. A produção de leis deveria obedecer a parâmetros como elevação da cidadania, substância, viabilidade e integração ao meio. Sob essas lâminas, milhares de projetos seriam decepados logo na origem, enquanto outros milhares ganhariam um freio de arrumação. Haveria compromisso do corpo parlamentar para trabalhar dentro de uma visão de conjunto, interesse social e operacionalidade técnica. Pontos consensuais fechariam as decisões e só os aspectos contraditórios abririam o debate. A produtividade deixaria de ser um jogo de soma zero, em que os lucros de uns saem das perdas de outros. O País ganharia transparência. A Justiça faria chegar sua marca ao último dos cidadãos, tornando letra morta entre nós a observação de Anacársis, um dos sete sábios da Grécia: “As leis são como teias de aranha; os pequenos insetos prendem-se nelas, os grandes rasgam-nas facilmente.”