Mauro Chaves
A CPMF, que não é contribuição (é imposto) e não é provisória (já tem 11 anos), é uma das embromações mais acintosas das muitas que tem sofrido a sociedade brasileira - e parece que poucos se dão conta disso. Não se trata, aqui, de discutir se é ou não “um dos piores tributos já inventados” - como disse Anne Krueger, a ex-mulher forte do FMI. A questão é que esse tributo simboliza e concretiza, no maior volume, o desrespeito que o Estado tem pelos cidadãos, ao enganá-los duplamente: na finalidade para a qual arrecada e no tempo que dura essa arrecadação.
A princípio esse imposto foi aceito pela sociedade brasileira pela credibilidade e pelo prestígio de quem o inventou - a grande figura pública do médico Adib Jatene, então ministro da Saúde - e tinha por finalidade, apenas, obter recursos para dar ao povo brasileiro uma assistência mais decente no campo da saúde, razão por que se imaginava que durasse uns dois anos, o que justificava sua qualidade “provisória”. Os dois anos já viraram 11, a alíquota original de 0,20% já virou 0,38%, a parte destinada à saúde reduziu-se a 0,16% e o resto tem sido despudoradamente desviado para sustentar a máquina de uma administração pública agigantada, inflacionada, perdulária e ineficiente, que mesmo assim já conseguiu, este ano, tirar dos escorchados contribuintes R$ 60 bilhões de impostos a mais.
E a saúde para a qual a CPMF foi inventada, como está? Ora, no SUS, pelo menos, a criatividade vai de vento em popa: nos hospitais já estão usando furadeiras elétricas comuns para realizar cirurgias na cabeça (“trepanações imobiliárias”) e fitas crepe para enfaixar pacientes operados (“cirurgias gráficas”).
(A propósito, por que convidar para o programa de auditório presidencial apenas os “100 maiores” empresários, se é a atividade dos médios e pequenos que propicia a maior parte dos empregos do País? Estes também não deveriam ser ouvidos e opinar sobre a “carga tributária razoável” que tem o Brasil? Bem, talvez fossem menos seduzíveis pelo animado apresentador e resistissem mais à cooptação.)
No resto do mundo podem ser encontradas misérias, injustiças e violências iguais ou até maiores do que as nossas. O que, certamente, não se encontra em outras nações - especialmente em democracias contemporâneas - é a embromação tão sistemática em que se tenta manter uma sociedade. Este é o país do “empréstimo compulsório” que nunca foi empréstimo, porque jamais foi cogitado ser devolvido, é o país dos “precatórios” - em que os governos tomam o que é dos cidadãos, prometem pagar, mas remetem os infelizes expropriados ao inferno da espera interminável, às vezes de uma vida inteira, para receber o que o Estado lhes deve (o mesmo Estado que não perdoa os que não lhe pagam).
Sempre existiu no País uma espécie de “ética da protelação”, pela qual se propõe chegar a uma situação mais justa gradualmente, aos poucos, o que, na verdade, encobre a pura e simples enganação, que transforma as situações “provisórias” em permanentes, os disfarces momentâneos em desgraças definitivas. Por trás da proposta de “redução gradual” da alíquota de um imposto (como a famigerada CPMF) está a mesma embromação do “empréstimo compulsório”, dos aberrantes “precatórios” e de todos os expedientes forjados para “enrolar” os direitos dos cidadãos. É aí que se inserem, também, as leis processuais, que propiciam as chicanas judiciais, o volume extravagante de recursos e de instâncias, que fazem a Justiça andar a passos de cágado - e os bandidos escapar a passos de lebre.
Por outro lado, essa “ética da protelação” é a que está sempre, em nosso espaço público, prometendo “reformas” que nunca virão - porque, no fundo, ninguém tem interesse em que venham. Promete-se reforma política, promete-se reforma tributária, promete-se reforma administrativa, promete-se reforma trabalhista, promete-se reforma (ou melhor, “revolução”) educacional, promete-se reforma judiciária, mas tudo isso vai sendo adiado, procrastinado, jogado para a frente, diluído no imenso barril das aspirações genéricas nacionais - como a alfafa amarrada à frente do burro que o faz andar. E tais promessas enganosas são as que sustentam os argumentos em muitas negociações, como as desencadeadas por governo e oposições, em torno da proposta de prorrogação de vigência da CPMF.
Uma indagação muito simples deixa de ser feita, em ocasiões como essa: se o governo pode reduzir a alíquota, por que já não a reduziu? E, ainda, se pode melhorar o porcentual da arrecadação destinado à saúde, por que já não o fez, deixando de desviar para outros setores aquilo que, originalmente, em benefício da saúde fora inventado?
Por tudo isso é que, no momento em que o Senado Federal passa pela maior desmoralização que já sofreu uma instituição desta República, quando aos olhos da Nação parece ter-se tornado um clube de poucos, tão dispendioso e inútil quanto suspeito, de defender os interesses grupais mais rasteiros, inteiramente apartados dos verdadeiros interesses da sociedade brasileira, é dada à Câmara Alta uma grande oportunidade de recuperação: a possibilidade de derrubar, de uma vez por todas, a famigerada CPMF, o que poderá marcar o início de um revolução ética, neste país, contra as coisas falsamente “provisórias”, contra as mentirosas promessas de solução a longo prazo, contra o disfarce traiçoeiro do “gradualismo”, contra o engodo permanente contido nas idéia de que “isso é bom, mas não já” e todas as demais formas, de embromar a Nação, que se têm inventado no espaço público-político caboclo. Eis a grande oportunidade institucional de se dizer: chega!