Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 21, 2007

DANUZA LEÃO Os muito ricos não gargalham

Eles não têm dinheiro no bolso nem chave da porta; não freqüentam lugares da moda nem usam roupas com grifes à mostra; não carregam malas nem passaporte. Eles não são ricos: são muito ricos

DANUZA LEÃO
COLUNISTA DA FOLHA

Os muito ricos adoram brincar de pobres. Para as férias, costumam ter uma casa simples, mas muito confortável, numa praia ainda não descoberta do Nordeste, e por nada deste mundo deixariam uma revista fotografar este paraíso.
Lá, usam bermudas velhas, camisetas desbotadas, andam descalços e só recebem os muito íntimos. Quando isso acontece, oferecem uma cachacinha local e nada lhes dá mais prazer do que uma comida muito simples, especialidade da mulher do caseiro. O casal trabalha com eles há 30 anos, usa bermuda, camiseta, anda descalço mesmo para servir a mesa e tem uma familiaridade com os patrões que só o tempo permite.
Os carros dos muito ricos costumam ser pretos, de marca indefinida e nunca do ano.

NÃO FREQUENTAM FAMOSOS TEMPLOS DE LUXO E NUNCA USAM CHAVES
Os muito ricos não ostentam; os homens mandam fazer suas gravatas e lenços sob medida no Charvet, que fica num segundo andar na Place Vendôme, endereço em Paris que só poucos conhecem, e suas mulheres têm jóias maravilhosas mas guardadas no cofre de um banco -na Suíça, de preferência-, que são usadas apenas em jantares muito privados, só entre eles. E não usam uma só roupa ou acessório que seja "identificável". Têm seus costureiros exclusivos, que só elas conhecem, e que não fazem a menor questão de aparecer nas revistas de moda, para que suas criações não sejam usadas por estrelas de cinema na noite do Oscar ou manequins e assim não sejam vulgarizadas.
Só quem faz parte desse seletíssimo mundo é capaz de identificar a origem daquele vestido, daquela bolsa ou daquele sapato. Afinal, qual a graça de usar um vestido com a grife de St. Laurent, se esse vestido não foi desenhado pelo próprio e, desde que a marca foi vendida, no ano 2000, a cada estação muda o designer?
O porta-voz da luxuosíssima Bottega Veneta declarou recentemente: "Nós nos rendemos ao prazer da nossa fantástica qualidade e mão-de-obra, e isso diz mais do que qualquer grife". Detalhe: em seus artigos não há um só sinal sugerindo de onde eles vêm.
Jamais um logotipo, jamais uma letrinha que identifique de onde saíram aquelas preciosidades. Mas quem sabe -e só quem sabe- sabe.
Os muito ricos, até por cansaço de serem ricos há tanto tempo, viajam -e vivem- à maneira deles; em altíssimo padrão, mas na maior das discrições. Não é um problema de dinheiro, claro, mas os famosos templos de luxo e riqueza não são freqüentados por quem é rico de verdade.
Um amigo meu, quando vai a Londres, fica em um hotel que é uma casa; uma casa normal, tipicamente inglesa, com poucos quartos, onde só se hospedam pessoas altamente recomendadas. Nesse hotel-casa, cada hóspede tem a chave da porta da rua; não existe portaria, conseqüentemente também não existem porteiros, e, no living -confortável, charmoso e bem inglês-, um bar com todas as bebidas, os copos apropriados, e um balde de gelo. O hóspede se serve do que quer, e anota num bloquinho o que consumiu, que será cobrado quando for pagar a conta. Ah, e nessa hotel/casa tem um gato, que está sempre passeando pela casa. Pode ser mais chique?
Outra coisa invejável dos muito ricos é que eles não usam chave; a qualquer hora que cheguem, o motorista telefona do carro, discretamente, avisando que o patrão está chegando, e um empregado estará esperando, com a porta já aberta. A arrumadeira ajudará madame a se despir, perguntará se ela deseja alguma coisa -talvez um chá-, o mordomo fará o mesmo com seu marido, eles dormirão em lençóis que, se não são trocados todo dia, serão pelo menos passados todo dia, para não marcar o rosto, e o quarto ficará na mais perfeita ordem, sem uma só peça de roupa em cima de uma cadeira.

NUNCA SÃO VISTOS NAS RUAS OU LOJAS E ADORAM DIZER QUE NÃO GASTAM
Eles nunca são vistos nas ruas, nas lojas, nas joalherias. São elas que vão até eles, muito mais prático. Vendedores levam os itens mais novos e exclusivos das coleções e, nas raras vezes em que saem -afinal, às vezes é preciso respirar um pouco de ar puro-, se entram num estabelecimento comercial são logo reconhecidos pelos vendedores; a conta vai diretamente para o escritório, e o(s) pacote(s) é(são) entregue(s) em casa, pois rico não carrega embrulho. E cuidado: se acontecer de você sair com alguém muito rico, é capaz da conta sobrar para você, pois rico não costuma levar dinheiro no bolso, nunca.
Os muito ricos adoram dizer que não gastam; aquele vestido maravilhoso é um Chanel antigo de 30 anos atrás, o outro foi comprado há 15 numa lojinha exclusivíssima no interior da Espanha, e os lençóis, discretíssimos e sempre brancos, são bordados por freiras de um convento em Portugal.
Eles não falam de moda nem de consumo, e o vinho que servem em casa é tão garantidamente o melhor que é servido em garrafas de cristal -e não se fala na origem nem de que ano é, porque não precisa. Têm vários celulares, sendo um do motorista; quando saem, de onde estiverem, telefonam para que o carro já esteja na porta e eles não precisem esperar.
Viajar, para os que são ricos há muito tempo, é simples; para isto existe a femme de chambre -arrumadeira, para os mais simples. Cada peça de roupa é embrulhada em papel de seda, cada pé de cada par de sapatos vai embalado num saquinho de flanela. As malas nunca vão cheias demais, para que nada amarrote.
A secretária vai para o aeroporto três horas antes, levando a bagagem, os bilhetes de avião e os passaportes. Despacham as malas, fazem o check-in, e o casal sai de casa, ela com uma bolsinha pequena, e o marido, sem nada nas mãos.

NÃO LEVAM MALAS CHEIAS E NÃO COMEM NADA DURANTE A VIAGEM
Chegando ao aeroporto -dependendo da distância, vão de helicóptero-, são levados não para a sala vip, com aquele amontoado de gente aproveitando para beber de graça, falando aos berros, crianças correndo e gente dormindo pelas cadeiras. A sala vip dos muito ricos é exclusiva, e nela eles desfrutam de uma paz celestial até a hora de entrar no avião, quando são os últimos a embarcar. Só viajam em classe executiva, e durante a viagem não comem nada, só bebem água.
Estou falando dos que não tem um avião particular, é claro. Aliás, avião, a não ser particular, hoje em dia só é praticamente usado pelos pobres.
Mas, se necessário, quando se instalam em suas poltronas, as mulheres costumam recusar o cobertor que a comissária de bordo oferece; tiram da bolsa uma manta de pashmina, comprada no Hermès de Paris - US$ 3.000, pelo menos-, e que dobrada é do tamanho de um lenço. Qual a mulher que se cobriria com uma manta que já foi usada por outra pessoa, mesmo que tenha sido esterilizada?
Aliás, quando você quiser saber se uma manta é mesmo de pashmina, tire seu anel e procure passá-la por dentro dele. Se não passar, é falsa.
Essas pessoas não usam dinheiro, só cartão de crédito. Para dinheiro de bolso, é só telefonar para o banco onde têm conta -na Suíça ou em Luxemburgo- e um portador levará o dinheiro ao hotel, em qualquer lugar do mundo.
Em Paris costumam se hospedar no Ritz ou no Meurice; a femme de chambre que os acompanha nas viagens desfaz a mala, põe nas gavetas as peças menores e pendura as roupas -depois de passadas, é claro. Mas quem se hospeda nesses hotéis, se não quiser, nem precisa levar sua camareira, pois nesses hotéis as coisas funcionam automaticamente; e na hora de ir embora, as malas são tão bem feitas como quando chegaram.
Eles não freqüentam os restaurantes da moda e preferem almoçar no terraço da Closerie des Lilas, onde não correm o risco de encontrar uma só pessoa que pertença ao chamado jet set; talvez cruzem com um banqueiro que conhecem há anos, que chegou de Genève naquela manhã, a negócios, e vai voltar na mesma tarde. De trem, é claro.

DORMEM EM QUARTOS SEPARADOS E NÃO TÊM AMIGOS ÍNTIMOS
Curiosamente, os muito ricos dormem em quartos separados; não saem do quarto sem estarem formalmente vestidos, e o casal se trata com a maior cerimônia. Nem sei como conseguem procriar. Não têm a menor intimidade com os empregados e não costumam ter amigos íntimos, por isso quando têm seus problemas existenciais não têm com quem se abrir, pois não costumam freqüentar analistas. Imagine, um muito rico ser visto saindo do consultório de um psi.
Não foi à toa que a imperatriz do Japão, devido ao rigor do protocolo, teve uma depressão e ficou sem aparecer nem nas cerimônias oficiais, por longos anos.
E os muito ricos, muito ricos mesmo, homens e mulheres, têm uma coisa em comum: nunca ninguém ouviu, e jamais ouvirá, um deles dando uma gargalhada.
No máximo, eles sorriem.

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