"A miséria marginaliza e a legalização
do aborto é uma medida igualitária.
Sem miséria e com aborto, dá Suécia"
No dia em que os mecanismos de proteção social no Brasil funcionarem com a rapidez e a eficiência da patrulha ideológica, o Brasil será como a Suécia. O governador Sérgio Cabral, do Rio de Janeiro, em entrevista ao site G1, disse que as "favelas são fábricas de marginais", e o mundo desabou sobre sua cabeça. Para ilustrar sua tese, Cabral disse duas besteiras. A primeira é uma imprecisão grosseira: afirmou que a taxa de fertilidade nas favelas cariocas é igual às de Gabão e Zâmbia. Não é: nas favelas cariocas, ela é de 2,6 filhos por mulher, contra 5,4 e 6,1 nos países citados. A segunda é uma conclusão descabida: disse que o aborto é capaz de reduzir a taxa de criminalidade na medida em que impede o nascimento de crianças indesejadas e criadas em famílias desestruturadas. Não há nada assim: a tese, aventada no livro Freakonomics, aparece no condicional, precisa ser investigada a fundo, e há renomados especialistas que a contestam com veemência e solidez. É uma hipótese, não é um fato.
Mas a patrulha fez o mundo desabar na cabeça de Cabral porque o essencial de sua tese é cristalinamente verdadeiro: as favelas são fábricas de marginais, sim. Cabral, acuado diante da repercussão negativa, saiu desdizendo-se no dia seguinte. Não precisava: as favelas são fábricas de marginais, sim. Isso não quer dizer que os pobres são culpados, naturalmente maus e geneticamente mais inclinados ao crime. E, portanto, precisam ser eliminados. Essa é uma manobra patrulheira para falsificar o núcleo do argumento. Os pobres não são maus. Nem geneticamente mais propensos ao crime. Nem têm de ser eliminados fisicamente. A miséria é que é má. Quanto mais aguda, pior. A miséria precisa ser extirpada. A miséria destrói, brutaliza, animaliza, desumaniza. No seu rastro de desespero e desamparo, ela cria marginais. Cria alguns marginais, não todos – pois é óbvio, e diante da patrulha canarinho é preciso dizer o óbvio, que nem todo pobre é marginal, e nem todo marginal é pobre. Simplesmente porque só a razão econômica não explica a criminalidade.
O governador abriu o flanco aos que o acusam de defender a eliminação dos pobres quando falou do aborto como política de segurança pública. Mas, resgatado de seu vôo cego, o argumento essencial é, de novo, verdadeiro: as mulheres faveladas não têm acesso a políticas de planejamento familiar, a métodos de anticoncepção ou ao aborto (esse, apesar de clandestino, bastante acessível às mulheres mais abastadas). A evidência do tratamento desigual está na própria taxa de fecundidade dos morros cariocas (2,6) contra a taxa verificada na Zona Sul (1,7). Até em cidades do interior, o acesso ao mais elementar meio de contracepção – a camisinha – é restrito, pois há padres católicos que usam sua autoridade para demonizar o prefeito que estimula a distribuição de graça de camisinha (e depois o mesmo padre demoniza a mulher que faz aborto...!).
Cabral contribui com sua ousadia, apesar dos equívocos. Em vez da patrulha, seria melhor o debate franco, sem a manipulação de preconceitos, sem o recurso estacionário do politicamente correto, para que se possa dizer – como está dito aqui – que a miséria marginaliza e a legalização do aborto é uma medida igualitária. Sem miséria e com aborto, dá Suécia.