Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 21, 2007

FERREIRA GULLAR

Certa noite, no Opinião


Paulo Autran, que não tinha atuação política, tornou-se um grande adversário da ditadura

PAULO AUTRAN desempenhou o papel principal da peça "Liberdade Liberdade", que o Grupo Opinião montou, em 1965, em seguida ao show "Opinião", que promovera uma renovação do musical brasileiro, mesclando textos e canções. Entusiasmados com o êxito do show, Flávio Rangel e Millôr Fernandes nos propuseram elaborar uma montagem de textos e músicas, cujo tema seria a liberdade. Vale lembrar que a ditadura militar mal completara um ano e ainda hesitava em mostrar a verdadeira cara, mas era preciso agir com cautela. Chamar Paulo Autran para protagonizar o espetáculo impunha respeito, mesmo porque ele não tinha atuação política.
O espetáculo estreou com casa cheia, indicando que íamos repetir o êxito de público do anterior. Como os textos citados em cena, em defesa da liberdade, incluíam de Sócrates a Martin Luther King, passando por Voltaire e Lincoln, a censura não se atreveu a cortar nada, nem mesmo algumas piadas de Millôr, como uma que era dita com toda a seriedade por Autran: "Se a ditadura continuar permitindo que se montem peças como esta, o país vai terminar caindo numa democracia".
Mas, enquanto não caía, nem tudo eram risos. Assim foi que, certa tarde, recebo um telefonema de nossa companheira Pichín Plat, a quem coube, naquele dia, de acordo com rodízio que estabelecemos, cuidar da bilheteria. Avisou-me que um sujeito mal-encarado comprara 40 ingressos e exigiu que fossem todos juntos. Naquela noite, o vice-governador ia ver a peça. Telefonei para o jornalista Hélio Fernandes, irmão de Millôr e diretor da "Tribuna da Imprensa", que pediu a proteção da polícia. Antes do espetáculo reuni-me com o grupo e decidimos nada dizer aos atores para não alarmá-los.
Mal começado o espetáculo, chegaram os policiais -que tanto temíamos- para nos proteger. Uma rápida inspeção revelou a presença de uma pequena bomba artesanal, no banheiro do teatro, o que aumentou nossa preocupação. O que iria acontecer?
O primeiro ato transcorreu sem nenhum atropelo, mas não tirávamos os olhos do trecho da platéia ocupado pelos 40 inimigos. (Quarenta parece um número amaldiçoado: além dos 40 ladrões, houve recentemente os 40 aloprados...). A platéia se divertia, ora tocada pela fala irônica de Marco Antônio, em que denuncia a traição de Brutus, assassino de Júlio César, e que Paulo Autran interpretava magnificamente; ora rindo das surpresas do texto, quando Vianinha, bem sério, exige que cada espectador tome uma posição, seja de direita, de esquerda ou de centro, mas que, tomada, fique nela, "porque senão, companheiros, como as cadeiras do teatro rangem muito, ninguém vai ouvir nada!".
No intervalo, mal conseguíamos esconder dos atores nossa preocupação. Nara Leão, depois de tomar um gole de refrigerante, fitou-me sorrindo: "Por que vocês hoje estão sérios e mudos?", indagou. "Impressão sua", respondi. Começado o segundo ato, a expectativa aumentou.
A peça, a certa altura, aludia ao caso do poeta soviético Joseph Brodsky, que fora condenado a cinco anos de trabalhos forçados por desrespeitar as normas do regime. Logo em seguida, Paulo Autran falava do soldado norte-americano Eddie Slovik, que se negara a entrar em combate e estava sendo julgado como desertor. A cena é então interrompida por uma voz da platéia (um dos 40) que grita: "Cala a boca, comunista!".
Paulo, surpreendido, hesita, olha na direção de onde veio o grito, e logo outros brados se ouvem: "Fora, comunista!". Ele faz que não escuta e continua a cena: "Conhece o princípio militar segundo o qual um cidadão fisicamente capaz que não luta por seu país não merece viver?".
- Fora, comunista!
Foi aí então que a maioria da platéia reagiu, começou a bater palmas e as palmas, num crescendo, fizeram calar a voz dos 40 provocadores. O espetáculo transcorreu tenso, mas sem interrupções até o fim. Quando o público começou a se retirar, os policiais cercaram os agitadores e passaram a revistá-los: alguns escondiam cassetetes sob o paletó, outros traziam revólveres e manoplas. Depois de desarmados, foram levados para fora do teatro e, na rua, defrontaram-se com um fotógrafo da "Tribuna da Imprensa", que os flagrou. O retrato do chefe deles saiu no jornal, no dia seguinte: era um oficial da reserva da Aeronáutica.
Para encerrar a noite, convidamos Paulo Autran a tomar um chope conosco na Fiorentina. Ele não pôde ir, mas, depois desse episódio, tornou-se um firme adversário da ditadura militar.

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