Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 21, 2007

Nunca mais ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA

De uns tempos para cá voltou à baila um assunto que se acreditava enterrado.
Tortura nunca mais deveria ser a última e definitiva frase de uma página sombria e execrável da História do Brasil. O filme “Batismo de fogo” reviveu uma história bem conhecida dos exilados de então, a tortura que sofreu Frei Tito, sua destruição psíquica e posterior suicídio, e emocionou os jovens de agora, confrontados a um passado que lhes chegara de maneira velada e cercada de sigilos e algodões. Como um fantasma cruel, esse passado que é parte da biografia de muitos de nós voltava a assombrar uma juventude que se perguntava e nos perguntava como fora possível que tamanha barbaridade tivesse acontecido.

Enquanto isso, episódios como os de Abu Ghraib, o que se passa em Guantánamo, as justificativas da era Bush para seus desmandos — tudo em nome do combate ao terrorismo — foram pouco a pouco banalizando a prática da tortura, tirando-a do lugar da exedesesperadamente cração, transformada em assunto de debate, com prós e contras, onde antes só havia horror e repulsa.

Esses dias, um outro filme, “Tropa de elite”, semeou pela cidade debates apaixonados sobre a legitimidade da tortura “em certas circunstâncias”. Terroristas e traficantes estariam fora do denominador comum que há trezentos anos a civilização tenta construir com o conceito de direitos humanos. O que a ditadura escondia, envergonhada, punindo duramente quem a denunciava, hoje declina-se nos salões com uma frieza impressionante.

O que importa não é tanto o que se esteja dizendo nesses debates, mas que ele esteja existindo. O que estará acontecendo no país para que tamanha aberração se produza? Que grau de exasperação, de desespero, de ódio que cega, de sentimento de abandono, de medo onipresente está levando parcelas da população a apostar na violência selvagem contra a selvageria da violência? Que paroxismos levam pessoas que lutaram, e era preciso coragem, contra os torturadores da ditadura militar a investir um policial do Bope, porque incorruptível e bem-intencionado, do direito de torturar na luta mais que legítima contra o tráfico? Então honestidade, boas intenções e uma causa justa legitimam a tortura? Ou será a eficácia que a legitima? Nunca se ignorou o quanto esses métodos são eficazes para arrancar falsas e verdadeiras confissões. Apenas acreditávamos ter alcançado um outro patamar na evolução da espécie.

Alguém dirá: não há outra solução. É a partir daí que começa a descida do precipício. Emmanuel Levinas, em um texto admirável, “Entre nós”, disse que justificar a dor do próximo é a fonte de toda imoralidade. E que não sejam ele, nem quem o cita, suspeitos de bommocismo.

Apenas de forte, e quem sabe infundada, propensão a acreditar no futuro do pitecantropo.

Há um lado positivo em tudo isso. O grande mérito do filme é ser um revelador da extensão da tragédia que vivemos quando somos chamados a escolher entre duas crueldades ou escolher a crueldade como um mal menor. Esse o nosso pão de cada dia. Mas, justamente porque a escolha da crueldade destrói nossa própria humanidade, é que cabe recusar essa escolha e buscar exedesesperadamente um outro lugar, outras soluções, com o empenho de quem salva sua dignidade humana, que não é senão uma outra maneira de salvar a própria vida.

Se chegamos ao ponto em que apoiar e aplaudir a tortura é a única solução, essa solução não pode ser a única, simplesmente porque não é solução, é um outro problema tão grave quanto o que estamos tentando resolver.

Mãos à obra, à procura das outras, porque o ponto sem retorno é quando o gosto do mal que constatamos nos bandidos se faz contagioso. E esse terá sido o maior mal que nos fizeram: nos nivelarmos a eles.

O filme de José Padilha quebra um tabu quando fala abertamente da realidade da tortura. Quebremos outro, falemos abertamente de legalização das drogas. Há um misterioso silêncio sobre esse assunto, mesmo se muitos acreditam que seja uma alternativa que produziria resultados. Arriscada? Certamente. Mas onde está a tropa de elite, a elite civil, que vai pensar as estratégias, pular os obstáculos, andar na lama que haverá pelo caminho, com dedicação, competência e rigor absolutos? Quem é a tropa de elite que, com a mesma determinação, vai combater implacavelmente a corrupção, recusar a complacência com a cumplicidade, usar todos os recursos de que dispõe, nos mais diferentes campos de conhecimento e atividades, para desmontar a armadilha em que o tráfico aprisionou os moradores das favelas? As tropas de elite são assim chamadas porque, na lógica da guerra, são o que há de melhor, os mais corajosos e eficazes. A nossa lógica é a da paz e, no caminho da paz, a paz é o caminho. Assim como a tropa de elite tem plena consciência dos perigos físicos que corre, nós já conhecemos de longa data e estamos em estado de alerta contra os perigos morais, aqueles que destroem uma sociedade por dentro. Tortura, nunca mais. Nunca mais.

ROSISKA DARCY DE OLIVEIRA é escritora, presidente do Centro de Liderança da Mulher.

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