Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 28, 2007

DANIEL PISA

A gênese da liberdade

DANIEL PIZA, E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br


Essa declaração racista de um dos descobridores do DNA, James Watson, de que a África é atrasada porque os negros são menos inteligentes, assim como a declaração machista que o reitor de Harvard Lawrence Summers havia feito, de que há poucas mulheres entre os grandes cientistas da história por capacidade inferior inata, são - além de quase inacreditáveis em pleno século 21 - muito mal-vindas numa época em que vemos tanta pesquisa e reflexão inovadoras sobre a relação entre meio ambiente e herança genética. Acho que ajudam a reforçar a noção vulgar de que a ciência não pode ajudar a entender o comportamento humano, tema que seria exclusivo da psicologia, da sociologia ou das artes.

O que a gente tem visto é o contrário. Estudos sobre evolução e neurologia podem lançar luzes sobre a natureza humana, ou ao menos lançar sombras sobre teorias a respeito de entidades psíquicas que não existem de fato. Não, não se trata de dizer - como supõe certo jornalismo superficial - que os cientistas hoje reduziram o espírito à matéria, como se tudo pudesse ser explicado por seu funcionamento fisiológico. Na realidade, cada vez mais se percebe que a biologia e a cultura - "nature" e "nurture" - se relacionam de forma muito mais intensa do que se dizia antes. A carga genética não é mais nem um estoque estático, a predeterminar toda uma história vital, nem um simples conjunto de predisposições, do qual nosso livre-arbítrio poderia nos desamarrar.

Comportamentos complexos, como a construção de uma sociedade justa ou a elaboração de uma tese científica, envolvem fatores poligênicos (não se limitam a um gene só) e estes se entrelaçam com "inputs" do ambiente, que pode ou não ativar determinado traço genético ao longo do tempo. A simples existência de um único negro genial ou de uma única mulher brilhante - de Machado de Assis ou de Marie Curie - derruba por terra a generalização preconceituosa, porque cada um desses casos exigiria uma explicação específica que jamais seria suficiente. Não me venha com a frase pronta sobre "exceções que confirmam a regra". Essas exceções confirmam que não há regra; que a inteligência não é privilégio de nenhuma linhagem ou sexualidade.

Livros importantes sobre essa questão não param de sair. O mais recente de Oliver Sacks, traduzido no Brasil como Alucinações Musicais (Companhia das Letras), não é seu trabalho mais importante, mas seguramente traz histórias que dizem muito sobre como sabemos pouco sobre o cérebro para que tiremos conclusões tão categóricas. Sacks é um médico que se beneficiou de duas grandes tecnologias, a das novas pílulas que controlam estados mentais (como a L-dopamina, de Tempo de Despertar) e a das ressonâncias e tomografias que registram as atividades neuronais (mapeando com imagens coloridas a freqüência de cada região a cada momento). No novo livro, conta casos de pacientes que sofreram lesões cerebrais e encontraram na música não apenas um consolo terapêutico, mas a própria readaptação mental e social.

Como nos trabalhos de outro neurocientista, Antonio Damasio, Sacks mostra que o cérebro tem ampla faculdade de auto-regulação que independe da consciência propriamente dita e, no caso, que tem grande sensibilidade à linguagem musical, por lidar com emoções e sentimentos que às vezes nem sabemos que temos. A ênfase num dos elementos da música (ritmo, melodia, harmonia) serve melhor para cada tipo de doença, mas o que há em comum é essa capacidade de criar um equilíbrio justamente na região de maior atividade consciente, o córtex frontal - tanto que o escaneamento do cérebro de músicos profissionais mostra justamente que neles a música é operada ali de modo mais intenso. Razão e emoção não são dois módulos em eterno conflito dentro da mente.

Surpreendente é ver no novo livro de Steven Pinker, The Stuff of Thought (Viking), ainda sem tradução no Brasil, esse mesmo tom de sensatez. Pinker, afinal, é desses autores que levaram longe demais a analogia entre o órgão cerebral e os organismos evolutivos. Foi ele quem disse, por exemplo, que os homens têm maior tendência à infidelidade porque sua fisiologia requer a dispersão do sêmen para sobrevivência. (O que ainda não lhe ocorreu é que, pela mesma lógica, poderíamos dizer que as mulheres tendem mais à infidelidade porque um único óvulo precisa do assédio de milhares de espermatozóides...) A inclinação do macho por maior variação de parceiros pode ter origem biológica, quem sabe ligada com a maior energia física, mas essa seria apenas uma das variáveis no resultado final; séculos de submissão cultural pesam, e como.

Pois Pinker, nesse livro em que revê algumas idéias que defendeu em O Instinto da Linguagem (este disponível no Brasil, pela editora Martins Fontes), reage agora contra a dicotomia entre a visão da sintaxe verbal como uma estrutura inerente ao cérebro humano - a tese de Noam Chomsky - e a visão dela como produto da atividade social. A verdade está no meio e isso só a torna mais difícil de compreender. A linguagem é o estofo do pensamento, a "janela para a natureza humana" (como diz o subtítulo do livro), não por ser apenas veículo da lógica, mas por conter metáforas e associações que dizem respeito a padrões emocionais e morais que enriquecem o significado de palavras e frases. A natureza humana não é um papel em branco, mas tampouco um livro sem errata.

Pinker fala muito sobre o aprendizado verbal de crianças. Olhando meu filho de um ano e meio, penso sempre sobre como ele, que não fala mais do que uma dúzia de palavras, é capaz não só de entender frases mais longas, mas também de fazer sozinho associações inesperadas entre nomes e imagens. (Certa vez, subindo de carro a rua que dá no clube, ao entrever o portão de entrada ele exclamou "Gol!", porque na quadra dali, poucos dias antes, havia chutado bola. Sem ver a quadra e a bola, estabeleceu a ligação, mostrando também percepção de tempo.) A linguagem verbal, por conter imagens, sons e conceitos, envolve a ativação de diferentes áreas cerebrais, algumas relativamente distantes; e essa abrangência é que lhe dá uma riqueza constitutiva, não supérflua.

Para mim, há um teor libertário nessa idéia de que características potenciais, inatas ou adquiridas, interagem o tempo todo com estímulos externos, tantas vezes imprevisíveis - e de que, portanto, o cérebro é um órgão aberto, um sistema em constante transformação, sem deixar de ter muitos condicionamentos e limites. O que chamamos de mente ou espírito é essa interação entre ele e o ambiente, a qual sempre tem expressão fisiológica. Somos todos habitados pelos outros, por suas falas e noções, mas temos nossa própria voz, um compósito exclusivo que se forma a partir delas. Antes de seres morais, prontos a assimilar doses excessivas de orgulho e medo, somos seres curiosos, constantemente provocados pelo que nos cerca e dotados de algum poder de interpretá-lo. É muito bom que nosso cérebro independa de nossa vontade para seguir funcionando, pois isso permite que ao menos tentemos usar nossa vontade para ampliá-lo ou corrigi-lo. Nem tudo é vaidade.

DE LA MUSIQUE

Dez anos depois de Ok Computer, disco que a pôs na ponta do pop, a banda Radiohead acaba de lançar In Rainbows pela internet (www.inrainbows.com), num esquema em que cada pessoa define o quanto quer pagar. As matérias falaram muito mais sobre essa estratégia de marketing (e houve de tudo, desde quem não pagou nada até quem pagou mais de 20 euros) do que sobre o disco em si. Há algumas canções excelentes, como Nude, Faust Arp e Videotape, na linha do álbum citado e de Hail to the Thief, com melodias cativantes em meio a texturas eletrônicas, instrumentação sofisticada e letras inteligentes. O CD mesmo será lançado agora em dezembro e vou comprar. Meios não se excluem.

POR QUE NÃO ME UFANO

Ao menos um membro do governo Lula, Dilma Rousseff, fala coisas sensatas de vez em quando. Que o monopólio da Infraero precisa ser quebrado, não resta dúvida. Como na maioria dos países, boa parte dos aeroportos pode passar à iniciativa privada, além daqueles que podem ser assumidos por governos estaduais ou até municipais.

Enquanto isso, o caso da Cisco, que causou a previsível reação dos Pollyanas na linha "Tá vendo como corrupção existe em todo lugar?", em pouco tempo mostrou sua origem, a ligação com a máquina pública para driblar impostos que essa mesma máquina impõe. E uma suposta doação para o PT de R$ 500 mil, em troca de futuros benefícios da Caixa Econômica Federal, aparece numa gravação. Corrupção não muda de gênero, mas sim de número e grau...


''''A existência de um único negro genial ou de uma única mulher brilhante derruba
o preconceito''''


''''Razão e emoção não são dois módulos em eterno conflito dentro da mente''''

Aforismos sem juízo
Pobre de uma cultura que confunde divisão de trabalho com exclusividade de saber.

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