Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 18, 2007

A primeira do século


Ao pulverizarem riscos e ampliarem as
fronteiras da economia, as inovações
financeiras criaram um tipo novo de crise global


Giuliano Guandalini

Mahmoud Raouf Mahmoud/Reuters
UM SÓ MERCADO
Não há mais ciclos financeiros localizados. A turbulência que começou nos Estados Unidos contaminou bolsas tão distantes e assimétricas quanto a de Bagdá (acima), no Iraque, e a de Hong Kong, na China (à dir.)


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Há duas semanas, a economia mundial atravessava um dos períodos de maior prosperidade nos últimos trinta anos: as empresas nunca lucraram tanto, a China crescia a 10% ao ano, o Brasil exportava matéria-prima em volumes e preços recordes. Em total contraponto a esse ambiente saudável, as bolsas de valores e as moedas de todo o planeta foram estremecidas por um terremoto. Em duas semanas, trilhões de dólares evaporaram dos mercados de ações sem que houvesse um ataque terrorista, como o de 2001, ou a quebra de um país emergente – como a Tailândia, em 1997, a Rússia, em 1998, e o Brasil, em 1999. Um pânico de origem incerta e difusa dominou os agentes financeiros. Bancos europeus e americanos subitamente cortaram o crédito a empresas, mesmo as de primeira linha. Fundos de investimento tiveram de congelar saques. Os principais bancos centrais do mundo entraram em cena. Despejaram 350 bilhões de dólares nos mercados americano, europeu e japonês. Na sexta-feira passada, o banco central americano, o Federal Reserve, também diminuiu a taxa que cobra para emprestar dinheiro ao sistema financeiro. Tudo para evitar que o colapso da confiança no sistema financeiro levasse o mundo a uma recessão. A ação foi suficiente para estancar o pânico. Ao menos por enquanto. As lições dessa crise fora de hora e fora do script de prosperidade da economia mundial merecem uma reflexão.

A crise foi detonada, pelo que se sabe até agora, por uma razão inédita: pelo próprio medo de uma crise. Mais especificamente, pelo receio de que o vírus da inadimplência no setor imobiliário americano contaminasse a saúde da economia mundial. Nos últimos anos, foram criados fundos de investimento lastreados por papéis que carregavam os financiamentos de imóveis americanos. Como os juros estavam baixos na Europa e no Japão, esses fundos, que ofereciam retornos maiores, tornaram-se atraentes para os pequenos e grandes investidores. Criou-se uma pirâmide de investimentos de cerca de 1 trilhão de dólares por meio da qual a poupança de milhões de empresas e aposentados, europeus e japoneses, foi usada para financiar a construção e a compra de casas nos Estados Unidos. Essas aplicações eram vendidas como extremamente seguras, mas, na prática, não era bem assim. Financiamentos imobiliários concedidos com liberalidade a quem não tinha bom histórico de crédito minavam todo o edifício. Ele começou a ruir no início do mês, quando, para aumentarem a solidez de suas carteiras, alguns fundos de investimento tentaram se desfazer das hipotecas americanas na esperança de passar adiante o mico do risco. Quando não conseguiram fazê-lo, venderam ações de empresas saudáveis, derrubando as bolsas no mundo. O pânico se alastrou depois que vários fundos começaram a reconhecer que seus ativos valiam menos do que haviam informado anteriormente.

Chip Somodevilla/Getty Images
LAR, AMARGO LAR
Comissão do Senado americano (acima) discute o impacto econômico da crise imobiliária; imóveis foram financiados para quem não tinha renda, emprego nem bens

Jeff Haynes/AFP

Ninguém sabe ainda a extensão das perdas nem quanto tempo será necessário para varrer essa bagunça para fora do sistema financeiro. Em primeiro lugar porque, por meio de complexas estruturas de créditos que nem existiam há dois anos (veja dicionário da crise), os bancos pulverizaram o risco da inadimplência e, com isso, "contaminaram" fundos de investimento nos cinco continentes. Por isso os bancos e fundos começaram a desconfiar uns dos outros, negando-se a emprestar dinheiro a seus pares. Até prova em contrário, todos passaram a ser suspeitos de estar montados em cima de créditos podres. Tal desconfiança levou analistas mais apressados a atribuir a culpa pela crise à sofisticação do mercado financeiro. Balela. Essas inovações em contratos financeiros lubrificam os mercados e os tornam mais seguros. Isso porque diluem, para milhares de investidores, os prejuízos dos ciclos de turbulência inerentes ao capitalismo. É o que se vê hoje. Para não arcarem sozinhos com o risco de calote nos empréstimos que fizeram a consumidores americanos de segunda linha, os bancos fracionaram e empacotaram o crédito referente a esses empréstimos em títulos, repassados a milhares de fundos de investimento. A lógica é a seguinte: se os consumidores americanos pagarem suas hipotecas, os lucros serão dispersados entre todos os que compraram esses títulos; se houver calote generalizado, o prejuízo será socializado. O problema é que, ao dissiparem os riscos, esses mecanismos também aceleram e aumentam o alcance das fases de turbulência. "A conseqüência é a rápida transmissão internacional de qualquer problema de inadimplência. Isso explica o processo de multiplicação de perdas, muito além dos Estados Unidos", diz Carlos Langoni, ex-presidente do Banco Central e diretor do Centro de Economia Mundial da FGV. Mas não se podem culpar as inovações financeiras pelos excessos do mercado. Não era segredo que o setor imobiliário crescia dentro de uma bolha prestes a estourar. Os americanos haviam transformado suas casas em verdadeiros caixas eletrônicos, ao refinanciá-las, levantando mais dinheiro para torrar em bens de consumo. Ao contrário do que se previa, a crise começou sem que houvesse uma onda de inadimplência. Os atrasos no pagamento continuam na faixa de 5%. Por que, então, a crise foi deflagrada? Ao que tudo indica, por medo, puro e simples, de que a crise, iminente, estouraria. E de que a bolha americana estourasse.

A boa notícia é que a expiação dos pecados imobiliários americanos ocorre no melhor momento possível. A economia mundial poderá até sofrer alguma desaceleração, mas nem os mais pessimistas vêem no horizonte uma recessão em escala global. Para os economistas, haverá uma depuração positiva, com o aumento da seletividade na concessão de créditos. Alguns fundos de investimento foram à lona, e grandes investidores perderam muito dinheiro. Faz parte do jogo. "Neste momento, não seria saudável se todos saíssem ilesos", afirma o economista Fabio Giambiagi, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Na avaliação da absoluta maioria dos analistas, no entanto, as perdas deverão ser limitadas e o impacto da turbulência na economia real – ou seja, no dia-a-dia das pessoas e das empresas – deverá ser moderado. Por outro lado, é praticamente nula a possibilidade de o mundo voltar a surfar alegremente na maior onda de liquidez financeira de que se tem notícia. O pior cenário seria o de uma forte desaceleração mundial. Isso derrubaria o preço das commodities e afetaria diretamente a economia brasileira, que tem, na exportação desses produtos básicos, sua maior fonte de renda externa.

Os países emergentes, de maneira geral, tiraram lições das crises passadas e têm hoje finanças bastante mais sólidas. Mas nem por isso escaparão ilesos, mesmo porque muitos deles se iludiram com a euforia do período de bonança e deixaram de fazer reformas importantes e dolorosas. Como afirmou, com uma boa dose de ceticismo, o professor de Harvard Ricardo Hausmann, em entrevista ao Wall Street Journal: "Nos tempos de vacas gordas, todos parecem gênios. Mas eu atribuiria 80% da melhora vista nos emergentes aos preços elevados das commodities e ao rápido crescimento da economia mundial". Se o fluxo de dólares para os emergentes diminuir drasticamente, serão mais afetados aqueles países que possuem déficits nas suas transações internacionais. Entre os mais vulneráveis estão a África do Sul, a Hungria e a Turquia. O Brasil, ao contrário, enfrentará a atual turbulência financeira em uma situação inédita: o país tem sobra de dólares e o drama da dívida externa faz parte do passado. Houve, sim, a fuga de capitais especulativos, o que justificou a alta na cotação do dólar, que voltou a ficar acima de 2 reais. Isso não deve ser entendido como o prenúncio de uma inevitável desvalorização descontrolada e maciça do real, como a ocorrida há cinco anos, durante a crise eleitoral. O balanço da crise para o Brasil, até agora, é um copo meio cheio e meio vazio. O país não vai quebrar. Mas é só isso que pode almejar, já que mandou para as calendas gregas as reformas estruturais que poderiam dar mais eficiência ao setor público e estimulariam o crescimento sustentado da economia. Os próximos dias serão decisivos para saber se o Brasil está preparado para caminhar com as próprias pernas. É muito provável que o país se mostre capaz de vencer essa primeira crise do século XXI. Para espantar as que inevitavelmente virão, será preciso que o Executivo, o Legislativo e a iniciativa privada se lancem de corpo e alma na tarefa de fazer as reformas que, de tão óbvias, só precisam sair do papel.

O DICIONÁRIO DA CRISE

Toda crise econômica populariza termos e expressões próprios do mercado financeiro. Não é diferente agora

PRIME
Em inglês, o melhor. No mercado de crédito, é a classificação conferida aos clientes mais confiáveis, de primeira linha

SUBPRIME
Clientes de segunda linha, menos confiáveis. Os juros cobrados são maiores, assim como o risco de calote

MORTGAGE
Hipoteca. No setor imobiliário, serve para garantir o financiamento imobiliário

SUBPRIME MORTGAGES
Hipoteca nos financiamentos para clientes de segunda linha

EMPRÉSTIMOS NINJA
Concedidos a pessoas sem renda, emprego ou bens (No INcome, Jobs or Assets)

CDOs (Collateralized Debt Obligations)
Na tradução literal, "títulos que têm dívidas como garantias". Por meio deles, os bancos pulverizaram o risco de calote no setor imobiliário para milhões de investidores

FUNDOS HEDGE
São fundos para grandes investidores que prometem rentabilidade bem superior à dos títulos americanos. Investem em qualquer tipo de ativo, desde café do Vietnã até títulos da Eletrobrás. Atualmente estão entupidos de CDOs de péssima qualidade

CREDIT CRUNCH
Forte contração de crédito, um cenário em que nem os bons pagadores conseguem obter novas linhas de financiamento





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