Apesar de seu ritmo incessante, O Ultimato Bourne é o mais reflexivo dos filmes de ação – uma combinação inusitada, resultado do trabalho de um ótimo ator e de um grande diretor
Isabela Boscov
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Totalmente amnésico em A Identidade Bourne, e assombrado pelas suas memórias em A Supremacia Bourne, o americano Jason Bourne é, da maneira como foi criado pelo escritor Robert Ludlum, um clichê ficcional da última fase da Guerra Fria: para transformá-lo num autômato das black ops, as missões ilegais cuja autoria nenhuma agência governamental pode assumir, as "forças ocultas" do poder limparam sua mente de tudo o que fosse secundário à sua tarefa letal. A série cinematográfica, que agora se completa com O Ultimato Bourne (The Bourne Ultimatum, Estados Unidos, 2007), em cartaz no país a partir de sexta-feira, utiliza esse mesmo princípio. Mas seus fins são outros. Como bem observou a crítica Manohla Dargis no The Los Angeles Times, Identidade fazia uma indagação existencial – "quem sou eu?" – e Supremacia girava em torno de um dilema moral – "o que eu fiz?". Em Ultimato, o protagonista passa à etapa seguinte desse questionamento. Bourne quer deixar de ser quem é e, para tanto, precisa descobrir como foi criado. Um agente secreto em crise moral e missão de vingança é um artigo perigoso, e há muita gente que deseja matá-lo. Para se redimir e se transformar, portanto, Bourne precisa ser o que sempre foi: uma arma absolutamente mortífera. Até porque, mesmo neste terceiro filme, sua noção de identidade ainda é das mais vagas, e a Bourne só resta se mover por instinto e por reflexo.
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Damon, como o agente renegado Jason Bourne: ao contrário de James Bond, ele não tem tempo para piadas. Só para fugir e se torturar |
E ele se move, sem parar. Desde o início, a série achou sua marca no ritmo incessante, mas neste filme o diretor inglês Paul Greengrass a leva às últimas conseqüências. De Madri a Tânger, de Nova York a Londres, Jason Bourne corre por ruas, escadarias e telhados até se pôr à frente de seus caçadores e inverter o jogo, passando a caçá-los. Com os cabelos curtos, o rosto liso, o físico ágil e compacto, Matt Damon parece ter sido escolhido por suas propriedades aerodinâmicas. Mas, paradoxalmente, é na total ausência de espaço para a reflexão que o filme ganha seu sentido e sua relevância. Bourne não pode se dar ao luxo, como James Bond, de parar para fazer blagues, seduzir mulheres ou manejar traquitanas eletrônicas. O único tempo que ele tem é para fugir ou para correr de encontro aos que o perseguem, e para se torturar – um estado de consciência que Damon sinaliza em gestos mínimos e no olhar que, quando ele tem de agir, fica quase vazio, tal o nojo que tem de si mesmo.
Criar um personagem tão sólido a partir de tão pouco é trabalho para um ator de peso. Damon, que na ocasião do lançamento de Identidade esgotara o cacife obtido com Gênio Indomável e andava havia meses sem receber uma única oferta de trabalho, recuperou, com a série, todas as suas perdas. Não só comprovou sua competência e seu carisma como trouxe ao estúdio um bônus financeiro. Ultimato fez 70 milhões de dólares em seu fim de semana de estréia nos Estados Unidos, tornando Damon o melhor investimento de Hollywood: ele rende 29 dólares na bilheteria para cada dólar que recebe de cachê, contra 24 dólares de Brad Pitt, o segundo colocado.
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O diretor Paul Greengrass: cinema que se alimenta da tensão e da incerteza |
Mas a contribuição dos diretores de Bourne – Doug Liman no primeiro filme, e Greengrass nos dois últimos – é igualmente decisiva. Ambos são conhecidos pelos métodos caóticos e pelo clima de imprevisibilidade que criam entre equipe e elenco, o qual transpira de forma altamente benéfica para dentro da trama. Greengrass não isola seus sets: roda em plena rua ou numa estação como a de Waterloo, em Londres, no meio da multidão, sem cordão de segurança e sem sequer um roteiro fechado. É um cinema de guerrilha, que se alimenta do imprevisto, assim como da tensão e do cansaço de quem participa dele. Além de Greengrass, hoje, apenas o também inglês Michael Winterbottom e o brasileiro Fernando Meirelles sabem pôr o caos a seu serviço com tanta eficácia. Graças a esse talento, Greengrass faz de O Ultimato Bourne uma espécie de A Batalha de Argel para o mundo pós-11 de Setembro: uma guerra de um homem só contra as forças que colonizaram sua alma até – quase – destruí-la por completo.