Enquanto o Holocausto dos judeus na 2ª Guerra fecha o século 20, dando conta de contradições ainda do século 19, o espetáculo de Hiroshima marca o início da guerra do século 21, que teria sua resposta invertida na destruição do WTC em 2001, 56 anos depois.
Hiroshima e Nagasaki foram um trailer, pois brevemente (sinto prever o óbvio) veremos bombas atômicas explodindo por mãos de malucos do Islã, o que é fácil de imaginar, pois com a queda inevitável do general Musharraf no Paquistão - que tem bombas - está escondido o demônio Osama, apoiado na retaguarda pelos talebans. É acima de qualquer espanto que a besta apocalíptica do Bush não tenha ido atrás dele. Despejou tudo no Iraque, criando mais portos seguros para os malucos. Mas, essa hedionda estupidez da América é outro assunto. Voltemos a Hiroshima e Nagasaki.
Auschwitz e Treblinka ainda eram "fornos" da Revolução Industrial, mas Hiroshima inaugurou a guerra tecnológica, virtual, asséptica. A extinção em massa dos japoneses no furacão de fogo fez em 1 minuto o trabalho de meses e meses do nazismo. O que mais impressiona em Hiroshima é a eficiência, sem trens de gado humano, a morte "on delivery", "fast", "clean", anglo-saxônica. A bomba americana foi uma "vitória da ciência". Hiroshima e Nagasaki dão inicio à guerra "limpa", do alto, prefigurando Guerra do Golfo, Afeganistão e Iraque 2, que acabaram ficando sujas também. E que vão acabar espirrando em Nova York.
Os nazistas eram loucos, matavam em nome do ideal psicótico e "estético" de "reformar" a humanidade para o milênio ariano. As bombas americanas foram lançadas em nome da "Razão".
Na luta pela democracia, queimaram como "shitakes" os "japorongas", seres oblíquos que, como dizia Truman em seu diário: "São animais cruéis, obstinados, traidores." A bomba A foi rápida e eficiente como um detergente, um mata-baratas.
Ainda hoje é fascinante ver as racionalizações que a América militar inventou para justificar seu crime. Truman escreveu: "Eu queria nossos garotos de volta (?our kids?) e ordenei o ataque para acelerar essa volta." Diziam também que Hitler estava perto de conseguir a bomba, o que é mentira. A destruição de Hiroshima foi "desnecessária" militarmente. O Japão estava de joelhos, querendo preservar o imperador Hirohito e a monarquia. Além disso, os americanos queriam se vingar de Pearl Harbour, de surpresa. Queriam também intimidar a União Soviética, pois começava a guerra fria, além, claro, de exibir para o mundo uma superprodução em cores que enfeitasse a nova era do Império. A alegria mundial sufocou o horror. A bomba gerou até moda - lembro de minha mãe com coques altos chamados de penteado "Bomba A". O Holocausto sujou para sempre o nome dos alemães, mas Hiroshima soa quase como uma vitória tecnológica "inevitável". A opinião pública celebrou na Quinta Avenida. Era o início de uma era de prosperidade e esperança na América, dos musicais de Hollywood, pois o Eixo do mal estava derretido. Naquele ambiente mundial não havia conceitos disponíveis para condenar esse crime hediondo. Só restaram o desalento, o niilismo, a literatura do absurdo em meio às ruínas. A euforia americana avança até 1949, quando a bomba H soviética acaba com a festa, instilando a paranóia nacional que vai crescer muito em 1957, quando sobe o "Sputnik" - eu estava lá: parecia um 11 de Setembro.
Escrevo isso porque vivemos a era inaugurada por Hiroshima: um tempo em que a morte, ou melhor, o suicídio da humanidade virou uma escolha político-militar. Os computadores do Pentágono continuam atômicos? Sim. Tanto é, que estão recauchutando 10 mil bombas "velhas", para que rejuvenesçam e durem mais. Podem destruir o mundo 40 vezes, o que tira dos homens o mistério, o destino desconhecido regido por deuses, e, obviamente, desestimula qualquer esperança de Razão, projeto, cultura. O Holocausto ainda tinha o desejo sinistro de produzir um "sentido" para a matança, um futuro milênio ariano.
Com Hiroshima, inaugurou-se a "guerra preventiva" de hoje. Vivemos dois campos de batalha sem chão; de um lado, a máquina americana comandada pela lógica de um turbo capitalismo que raspará qualquer obstáculo a seu desejo. Do outro lado, temos os homens-bomba multiplicados por mil, graças à América também. Um dia eles chegarão à Broadway, com bombas sujas ou não.
Não há mais objetivos ideológicos ou humanos no comando. No lado Ocidental, quem mandam são as Coisas. A fim de proteger a lógica do petróleo, do poder de controle, qualquer arrasamento de terreno será possível. Querem ficar no Iraque mesmo derrotados. A loucura americana - encarnada pelo embaixador das Coisas, o Bush - está mais exposta.
Estamos assim: de um lado, a Coisa. Do outro, Alá. A pulsão de morte e o desejo de mercado se encontraram finalmente. Quem vai controlar?