Dúvidas razoáveis
Pode reparar. Em cada escândalo, alguma autoridade repete que “toda pessoa é inocente até prova em contrário”. O princípio é irretocável; a citação é enviesada. Ela é usada para se acusar a imprensa de condenar sem provas.
No caso presente, há vários indícios contra o presidente do Senado, Renan Calheiros, e contra o senador Joaquim Roriz. O que se quer? Que a imprensa nada publique até o caso estar transitado em julgado? Renan usou expressões fortes na acusação contra a imprensa: de “esquadrão da morte” a “fascista”.
Tem o direito de expressar suas fortes emoções, mas o fato é que, sobre ele, há “dúvidas razoáveis”.
A imprensa está divulgando estas dúvidas levantadas em investigações policiais e em reportagens nas quais se confronta o que ele disse com os fatos.
Renan Calheiros é presidente do Senado e do Congresso. É pessoa pública e preside um dos poderes da República. Deve contas dos seus atos à opinião pública. A sua vida privada interessa pouco.
Por natureza, o brasileiro não julga os políticos por seus casos extraconjugais; uma compulsão do eleitor dos Estados Unidos.
O que virou material para as investigações policiais, as sessões do Conselho de Ética e reportagens foi a relação do senador com uma empreiteira e a natureza tortuosa dos seus negócios agropecuários.
Falar sobre isso não é julgá-lo, é cumprir o dever dos jornalistas de buscar as informações necessárias para que o leitor-ouvintetelespectador forme sua opinião. Se Renan não fosse político, não tivesse poder de incluir emendas ao orçamento, não tivesse a influência que tem no governo, ele poderia pedir a um lobista de empreiteira que entregasse o dinheiro para pagar sua examante.
Sendo o que é, não pode.
Qual era a única forma de pagar a pensão à mãe de sua filha? Depósito em conta no banco. O dinheiro sairia de sua conta diretamente para a de Mônica Veloso. Tudo simples, direto e auditável. A circunavegação do dinheiro vivo pelo escritório da Mendes Junior é que espanta.
O espanto continuou quando ele mesmo, Renan Calheiros, divulgou informações sobre seus negócios agropecuários. O repórter Carlos de Lannoy, da TV Globo, foi verificar as notas e os supostos clientes do pecuarista senador, e tudo piorou muitíssimo, porque a reportagem exibiu gritantes contradições e uma coleção de indícios de irregularidades.
O que deveria ter feito o repórter? Divulgar a história ou guardá-la para depois que a Justiça o julgasse? A imprensa está julgando quando divulga ou apenas fazendo jornalismo? Há coincidências entre o caso Renan e o de Joaquim Roriz: ambos gostam de dinheiro em espécie, ambos têm negócios no mesmo ramo agropecuário, ambos preferem transações complexas às simples, ambos escolhem os amigos errados para pedir favores que envolvem dinheiro .
Joaquim pode ser amigo de Nenê. O ex-governador não pode pedir dinheiro emprestado a um empresário que tem concessões de transporte urbano na região que foi governada por ele.
Toda pessoa sobre a qual pesa alguma dúvida tem o direito de dar a sua versão dos fatos, contudo é direito de quem ouve acreditar ou não. A de Joaquim Roriz é assim: ele precisava muito comprar meia bezerra e pediu a Nenê Constantino R$ 300 mil emprestados. Nenê tinha um cheque do Banco do Brasil nominal a ele de R$ 2,2 milhões. Mandou sacar todo o dinheiro, não no Banco do Brasil, mas no Banco Regional de Brasília, que, contrariando rotina bancária, entregou a importância em dinheiro vivo, apesar de o cheque ser contra outro banco.
Um ex-diretor do BRB — posteriormente preso por outras suspeitas — telefona para Joaquim Roriz e avisa que está mandando um carro forte em sua casa.
Ele prefere que a partilha seja feita no escritório de Nenê: lá ele recebe o dinheiro e teria entregado o troco a seu dono.
O troco era de R$ 1,9 milhão. O maior troco da história das transações monetárias. Guiness! Se um ex-governador pudesse pedir empréstimo a um amigo concessionário de serviço público, como seria a transação? O dinheiro seria depositado por Nenê na conta dele, ou da empresa dele que estava pagando pela bezerra. A transação seria registrada num documento de empréstimo entre pessoas físicas, ou jurídicas.
Tudo simples, direto, auditável.
O presidente Lula e a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, ao defenderem Renan Calheiros, sugeriram que princípios democráticos estão sendo desrespeitados. Os dois fazem confusões conceituais e factuais. Quem está errando é o presidente do Senado, que tem usado o cargo para defesa pessoal.
Quem está se omitindo dos seus deveres é o Conselho de Ética, na sua explícita chicana de acobertamento.
Quem está pondo a democracia em risco é o Senado, por não entender a gravidade do momento e pela estreiteza de suas opções. Em vez de defender a instituição, a maioria dos senadores tem escolhido defender o presidente da Casa. Assim, subverte sua função constitucional de representar a Federação, vira refém de um dos seus membros e solapa a confiança que, na democracia, o povo deve ter em suas instituições.
Entrevista:O Estado inteligente
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