As tão polêmicas ranhuras que as autoridades governamentais não conseguiram fazer na curta pista principal do Aeroporto de Congonhas começam a aparecer nos espaços sociais, formando sulcos profundos em áreas centrais e entalhes mais suaves nas margens. A síndrome da emoção, o que a era Lula mais temia, chega trazendo na bagagem o medo, a raiva, o ressentimento, enfim, a sensação de que o governo é o principal responsável pela dor de famílias enlutadas e de clientes da aviação, que, de repente, se sentem jogados num vácuo civilizatório. A frustração coletiva se expande nas ondas de dúvidas, acusações recíprocas, deboches, condecorações esdrúxulas, ditos e desmentidos sobre as causas do acidente com o Airbus 320 da TAM que vitimou cerca de 200 pessoas em São Paulo. E não se pense que apenas classes médias vêem multiplicadas as zonas de vulnerabilidade que lhes causam insegurança. Apesar de ser ínfima a parcela que viaja de avião, nela se incluem integrantes dos estratos C e D. Nos últimos tempos, eles também passaram a ser usuários de aeroportos, fato que o governo exibe como troféu de sua política de redistribuição de renda. O próprio Lula garantiu que “está aumentando a capacidade de viajar do povo brasileiro”.
Não é preciso, porém, buscar argumentos quantitativos para demonstrar o impacto causado nos segmentos sociais pela crise que culminou com a tragédia de Congonhas. Para usar um adjetivo apreciado pelo presidente Lula, a estampa é inexorável. Cenas flagradas pelas emissoras de TV nos principais aeroportos nacionais mostram que, entre passageiros esgotados pelo cansaço, crianças chorando, estrangeiros estupefatos, grupos que perderam compromissos, há pessoas humildes, famílias que pagam a passagem em longas prestações. Multidões, que lotam estações do metrô nos horários de pico e são vistas em estádios de futebol, mostram a cara em outros cenários. Que fique bem claro: não se pretende afirmar que se descortina o apocalipse do governo Lula. A rede social que montou é e será suficiente para resguardar por um bom tempo seus índices de aceitação. Mas não é resistente a apupos e vaias que, circunstancialmente, podem agredir seus tímpanos.
Este é, aliás, o desafio com que se defronta o governo. Sairá chamuscado do incêndio que consome os domínios sobre o sistema aéreo? Partamos da constatação de que o conceito de massas, inclusive no Brasil, não se restringe àquele curral de cidadãos passivos que John Stuart Mill, autor das Considerações sobre o Governo Representativo, caracterizava como um bando de ovelhas dedicadas tão-somente a pastar capim uma ao lado da outra, fazendo contraponto aos cidadãos ativos. Aliás, Ortega y Gasset, nos anos 30, ao escrever seus ensaios sobre a crise européia, já defendia a idéia de que a massa não abriga apenas “massa operária”. Dentro dela existem cidadãos conscientes, que resistem ao fenômeno da apatia política e rejeitam ser súditos dóceis e indiferentes. Assim, ao contrário do que se pode imaginar, as massas brasileiras não agem, todo o tempo, como cordeirinhos obedientes ao chefe do bando. Quando se sente ameaçado, o povo reage. É isso que se vê, quando pessoas amotinadas invadem aviões, como em Fortaleza, ou acorrem ao balcão de denúncias para verberar contra as autoridades da Anac, da Infraero, da Aeronáutica e companhias de aviação.
Sob este prisma, outros aspectos devem ser observados, começando pela eficácia da gestão Lula. Alguém poderá objetar lembrando que desde o episódio Waldomiro o governo se vê encrencado com denúncias de corrupção, mas, como teflon, nele nada pega. Convém observar que, hoje, os ingredientes da crise são outros. As massas - e aqui se inserem grupamentos centrais - costumam distinguir, entre os casos, os que atingem indistintamente governantes e classe política e os que afetam diretamente sua vida. No primeiro compartimento está a corrupção; no segundo, a insegurança, o autoconstrangimento, os receios. A corrupção entra no gabinete da racionalidade, enquanto a fobia social percorre as artérias da emoção; aquela não chega a provocar sismos na imagem do governo (“já que todos roubam”), esta, sim, desmonta conceitos. Um Estado em pane deixa em pânico pessoas de todas as classes. E reforça a visão pessimista sob a qual se espraiam a anomia, o desrespeito, os vandalismos, enfim, a degradação social.
Não é de estranhar que um passageiro da TAM, ao pedir o fone de ouvido e saber que todos estão quebrados, provoque a aeromoça: “E os freios do avião, também estão quebrados?” Inoportuna ou não, a pergunta não justifica sua expulsão da aeronave. Se houve incivilidade, a companhia também tem parcela de culpa. Afinal, reconheceu que um reversor do avião sinistrado estava travado. Portanto, exibicionismos ruidosos ou comportamentos desbragados, na esteira da crise aérea, fazem parte do roteiro. Que não se espere tolerância zero, mas a propagação da cultura do vidro quebrado: se uma vidraça está despedaçada, o restante será rapidamente destruído. Esta lógica explica a expansão da delinqüência. Neste ponto, voltemos ao desafio que o governo terá pela frente.
Mesmo pondo fim à barbárie gerencial, responsável pela baixa capacidade de administrar a crise, o governo sairá arranhado. Ficará marcado pela dificuldade de tomar decisões. Toda vez que a mídia abre espaço para cenas de desespero e desculpas esfarrapadas de autoridades - cada uma querendo eximir-se da responsabilidade -, comentários agudos acendem a fogueira de pequenos núcleos. Nela estão três, quatro ou cinco fogueteiros que se encontrarão, mais tarde, com outros que, por sua vez, se dispersarão pelas multidões alimentando as tochas. Ao final de um longo processo, o fogo se alastrará pelos recônditos mais longínquos. Quando o governo se der conta, a água do carro do bombeiro poderá ser pouca para atenuar o estrago.
P.S.: Na posse do ministro Nelson Jobim houve muito riso e pouco siso. Uma agressão ao luto que cobre o País.