Anoitecia em Salvador num dia de homenagem a Luís Eduardo Magalhães logo após sua morte. As muitas autoridades foram saindo aos poucos, e ACM foi ficando. Houve um momento em que só tinha gente do povo lá. Ele se sentou num banco, derrotado. As pessoas se chegaram, passavam a mão na cabeça dele, faziam carinhos, falavam baixinho. ACM se deixou consolar pelo seu povo.
Essa cena de intimidade entre ACM e baianos anônimos revelava um traço da sua liderança. Ele chorou em público pela morte do filho, exibiu explicitamente sua dor; eles se sentiam participantes, íntimos.
A morte de Luís Eduardo foi uma tragédia dupla. Pessoal e política. Filho querido e escolhido para sucedêlo, Luís Eduardo tinha modernizado o papel recebido, era um líder que falava com áreas do país que não ouviriam o pai. ACM tinha planejado a trajetória do filho, e ele era, de fato, um quadro com chances de representar uma atualização do grupo político e chegar à presidência.
Naquele momento, a maioria dos analistas previu o fim de ACM, que não sobreviveria à morte do seu próprio futuro, diziam. Dias depois da morte, pedi a ele uma entrevista para o programa da Globonews e, para minha surpresa, ACM concordou. Fui à sua casa e me espantei. Ele chorou novamente, sem tentar esconder durante a entrevista a sua fragilidade emocional, mas, ao mesmo tempo, falou de política com um vigor inesperado. O vigor dos sobreviventes.
Sobreviveu à morte do filho, mas passou por outros momentos difíceis em que, de novo, parecia acabado.
Porém, de novo, voltou.
Seus biógrafos terão trabalho.
Terão que mostrar defeitos e qualidades, erros e acertos, ódios e devoções.
Os sentimentos que inspirou foram sempre intensos e extremos.
Não será possível contar a história do Brasil desde meados do século passado sem falar de Antonio Carlos Magalhães. Serviu à ditadura e deu um golpe fatal ao fim do regime.
Numa entrevista que fiz, ACM se irritou quando eu disse que ele saíra da ditadura na hora em que o barco estava afundando.
Aliás, essa entrevista é outra história curiosa. Foram dois dias fechados num hotel: um grupo de cinco jornalistas, um editor e ele. A tarefa era perguntar tudo, abordar o máximo de assuntos; uma entrevista-livro lançada pela editora Revan, que escolheu o título “Política é paixão”.
E foi exatamente uma pessoa arrebatada por vários temas que Ancelmo Gois, Marcelo Pontes, Maurício Dias, Rui Xavier e eu entrevistamos.
Os maiores entreveros ocorreram quando toquei em seguidos pontos delicados da vasta biografia do político. O livro foi um instantâneo, que mostrava uma pessoa que falava de política com paixão; que reagia com fúria às perguntas mais ásperas, mas respondia a cada uma. O conflito era parte da maneira como vivia, portanto, a agressividade contra perguntas duras terminou quando acabou a entrevista.
Outra marca da sua forma de fazer política era o recrutamento de quadros políticos bons técnica e administrativamente.
Se outros líderes tivessem a mesma preocupação de apadrinhar talentos com tais capacidades, parte dos nossos problemas estaria resolvida.
Ele próprio se dedicava a entender também os aspectos técnicos das áreas que comandou, tanto na Eletrobrás quanto nas Comunicações. Foi um dos primeiros a falar de um aparelho novo, que parecia saído de um filme de ficção científica — o celular. Previu que viraria uma febre, e todo mundo sairia acompanhado dele. Hoje o Brasil tem 105 milhões de aparelhos andando por aí.
Algumas histórias sobre ACM estão na lista do que não fazer, como grampos e espionagens de adversários, quebra do sigilo do painel, entre tantas outras; porém, sua capacidade de preparar e lançar quadros deveria ser estudada por seguidores e adversários.
A idade, os últimos golpes e a derrota do seu grupo na disputa do governo haviam feito de ACM político poente.
Ele era um expoente de uma outra era e de uma outra forma de se fazer política, mas deixa impressas certas características marcantes, como a sensação de que representava a Bahia não por ser a parte da Federação que o elegia, mas por amor profundo a uma pátria à parte.
Na relação com os jornalistas, foi protagonista de inúmeros episódios inesperados.
Conto um: Nove da manhã de um dia distante, toca o telefone na minha mesa de trabalho no GLOBO. Do outro lado da linha, a voz inconfundível de ACM. Entendi que estava bravo, só não conseguia atinar a razão da pergunta que me fez e, por isso, atônita, esperei ele repetir: — Você tem amante? Quando me recobrei do susto, perguntei que pergunta era aquela. Na discussão acalorada que se seguiu, ele explicou que a pergunta que me fazia era tão descabida quanto eu ter escrito na coluna que a filha dele era, na época, casada com o dono de uma empreiteira.
Ele queria dizer — daquele jeito estranho — que a minha vida não era da conta dele, da mesma forma que a da família dele não era da minha conta.
Muita gente, diariamente, não gosta de notas nas colunas, mas reagir assim só mesmo ACM.
Uma vez fui entrevistá-lo em Salvador, quando ele já tinha deixado o governo estadual.
Entrei no táxi, pedi para ir à casa do senador Antonio Carlos e dei o endereço.
— Ah, você vai entrevistar o governador? — perguntou o motorista.
— Não. Ele não é mais governador. É senador — respondi.
O motorista me olhou como se olha um estrangeiro que nada entende da cultura local e me corrigiu com voz que não admite contestação: — É o governador Antonio Carlos.
Entrevista:O Estado inteligente
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