Se Lula diz que ao voar entrega sua
sorte a Deus é porque nem ele confia
nos controles de seu governo
O título acima é de um histórico editorial do jornal O Estado de S. Paulo, quando da edição do Ato Institucional nº 5, em 1968, e do conseqüente apagão do que restava de instituições democráticas no país. O.k., não chegamos a tanto. O governo foi legitimamente eleito, o Congresso está aberto, a imprensa é livre e vigoram o habeas corpus e outras garantias individuais. Mas, se não temos um apagão no âmbito das liberdades, vivemos um outro, no campo da eficiência, que a crise do setor aéreo, desdobrada em tragédia, tornou mais claro do que nunca. Alguns exemplos de instituições em frangalhos:
Ministério da Defesa. Quando foi criado, no governo Fernando Henrique, representou uma esperança de avanço civilizacional. Era, enfim, a consagração da supremacia do poder civil, e portanto político, sobre o militar. De quebra, abria-se a possibilidade de as três Armas trabalharem em conjunto, livres de diferenças de filosofia e mais aptas a fazer o interesse geral prevalecer sobre os enclaves corporativos. Tudo ótimo, não tivesse o próprio governo Fernando Henrique se empenhado em desfazer a ilusão ao nomear ministros fracos e decompor-se em melindres diante de militares acuados pela ameaça de perda de poder e status. No governo Lula, e em especial na gestão Waldir Pires, quando a crise aérea despertou o ministério do sono a que se auto-condenara, sua doentia inoperância revelou-se por inteiro.
Na semana passada, a troca de Waldir Pires pelo ex-deputado, ex-ministro da Justiça e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim ganhou ares de relançamento da instituição. Finalmente assumia o cargo um titular de perfil forte, de quem se espera ação, e não desempenho tão invisível e entorpecido quanto possível. Jobim tem pela frente o desafio de pôr fim à bagunça vigente no transporte aéreo. Façamos votos para que tenha êxito, mas tenhamos em mente o importante detalhe de que o melhor de suas qualidades e os mais intensos de seus esforços estarão voltados para uma questão que nada tem a ver com Defesa. Transporte é atividade civil, e só por uma deformidade institucional brasileira o transporte aéreo abriga-se sob jurisdição fardada. Ainda não foi desta vez que o Ministério da Defesa ganhou um titular para enfrentar os assuntos centrais da pasta.
Anac. A Agência Nacional de Aviação Civil, assim como outras agências reguladoras, foi criada para representar o papel de órgão do estado, e não do governo de turno. Por isso mesmo, a seus diretores se atribuíram mandatos fixos (de cinco anos) e não coincidentes com os do Poder Executivo. Isso quer dizer que nem podem ser demitidos nem têm sua atuação limitada a um único mandato presidencial. Diante do despreparo da maioria dos diretores da Anac, no entanto, cogitou-se na semana passada de mudança na lei, de modo a torná-los demissíveis. O próprio Nelson Jobim pronunciou-se nesse sentido.
Ora, tornar os responsáveis pelas agências demissíveis por um ministro ou pelo presidente equivale a subordiná-las ao governo, o que lhes retira a própria razão de ser. O problema está, numa ponta, na opção do governo por indicar apaniguados, de preferência a pessoas de "ilibada reputação" e "elevado conceito no campo de especialidade dos cargos para os quais serão nomeadas", como diz a lei, e, na outra, na omissão do Senado, ao qual cabe examinar as indicações do Executivo. Por conveniência, conivência ou preguiça, o Senado não tem feito senão carimbá-las, como sempre fez com as indicações para os tribunais superiores ou as embaixadas.
O governo como um todo. "Toda vez que o avião fecha a porta, entrego minha sorte a Deus", disse o presidente Lula, na cerimônia de posse do ministro Jobim. O discurso foi dos mais desastrados, na longa série de discursos desastrados já proferidos pelo mesmo orador. Houve até gracinhas, num momento que aconselharia sobriedade. Reveladora como um ato falho foi a afirmação da entrega da sorte a Deus quando viaja de avião. O bom funcionamento dos motores, as perfeitas condições dos aeroportos, a habilidade dos controladores de vôo – em nada disso o presidente confia. Ou seja: não confia em nada daquilo que cabe a seu governo controlar e fiscalizar.
No desdobramento do raciocínio, Lula disse que ao viajar de avião está "na mão de um comandante, que é um ser humano", e ao sabor "das intempéries, que nem sempre o ser humano consegue controlar". Esse tal de "ser humano" é uma das obsessões do presidente. Freqüenta-lhe os discursos com a mesma assiduidade que as imagens do futebol, as autolouvações do "nunca antes neste país" e as histórias do passado de retirante. Poucos dias antes, ele descrevera as vaias recebidas no Maracanã como "reação do ser humano". O "ser humano" é invocado para justificar erros, fraquezas e limitações da espécie. No caso do discurso da semana passada, não será talvez demais imaginar que o avião que o presidente tinha em mente era o avião Brasil e que o comandante, tão sujeito a falhas que o melhor é confiar em Deus, não seria senão ele próprio.