Entrevista:O Estado inteligente

domingo, julho 01, 2007

JOÃO UBALDO RIBEIRO

Declarações exclusivas


Estou acostumado à presença dele. Como trabalho junto ao terraço, costumo dar uma saidinha para vê-lo, sempre na mesma postura, às vezes aureolado de nuvens. É bom e quase sempre dou uma rezadinha rápida, antes de começar o dia. Mas não espero resposta direta, teofania é para os escolhidos e não vou me arrogar a pertencer a esse time. A vida, contudo, tem muitos mistérios, a começar por ela própria, e foi assim que tomei um susto, ao ouvir uma voz de timbre claro e sonoro, perto e ao mesmo tempo distante.

— Você aí — disse a voz.

— Quem, eu? — respondi, sem saber direito o que acontecia.

— Tem alguém mais nesse terraç o ? — É... Não, eu...

— Então só pode ser você mesmo.

Vi você aí e resolvi dar uma declaração.

Não que adiante muito, porque, em primeiro lugar, não vão acreditar em você. Mas isso tem pouca importância, porque, se eu descesse em pessoa outra vez, vocês iam me crucificar de novo, não tenho a menor dúvida disso. Você serve como qualquer outro. É somente uma declaração, um desabafo, não precisa tomar nota, eu providencio que você não esqueça nada.

— Sim, vós... O senhor... Desculpaime, mas como devo tratar-vos? Assim mesmo, como me ensinaram no catecismo? — Como você quiser, nunca dei importância a isso. Melhor não usar o “vós”, você acaba errando na conjugação de um subjuntivo aí e passando vergonha. Só não me chame de Excelência, porque me ofende, estou fora dessa.

— Eu não sei o que dizer, mas...

— Não precisa dizer nada, eu sei que você é baiano. Pronto aí? — Pronto, pronto. Posso até imaginar sobre o que é, deve ser sobre essa demonstração de fé que o povo está dando, lançando sua candidatura a uma das Sete Maravilhas do Mundo, não é? — Acertou. Mas não acertou em tudo, porque vou dizer o contrário do que vocês esperam. Escreva lá que eu estou me lixando para essa homenagem, que não a considero demonstração de fé nenhuma e que, aliás, acho tudo de uma frescura sem tamanho. Eu nunca quis ser pirâmide.

— Mas eu... Eu confesso ao senhor que fico muito surpreendido, não só com o que o senhor pensa, mas com sua... Sua linguagem, eu não esperava que o senhor usasse esses termos.

— Olhe aqui, eu tenho imenso afeto pelas que dedicam a vida a mim, mas não fui criado em colégio de freiras e meu pai era carpinteiro. Até parece que você acredita naqueles retratos que fazem de mim, sempre louro, de olhos azuis revirados para cima e com cara de coitadinho fracote.

Você se lembra de algum retrato meu dando risada? Assim de cabeça, não me lembro de nenhum. Mas eu dava risada, cansei de rir com as brincadeiras que a turma fazia, eu era um homem, sujeito a tudo a que os homens são. Vocês, quando falam em mim, ficam naqueles ares melosos, com vozes lacrimosas, uma tristeza.

E eu sou alegria, embora a maioria de vocês ache que alegria é dinheiro.

Mas isso não vem ao caso, a conversa não ia acabar nunca. Tudo certo, então? Essa campanha é homenagem a uma estátua e não a mim, para começar. Vocês estão é homenageando vocês mesmos, porque fizeram a estátua e lhe dão conservação.

Agora querem que o mundo todo fique falando em vocês, por causa dela. É porque eu não quero me aborrecer logo de manhã cedo, mas não me sinto nada homenageado, me sinto é usado, isso é o que me sinto.

— Não, por favor, o senhor desculpe, mas é que a maioria das pessoas considera a candidatura uma grande demonstração de fé.

— Pois não é. Na melhor das hipóteses, é ingenuidade ou ignorância.

Na pior, é somente para faturar usando meu nome ou pura babaquice mesmo.

— Babaquice? O senhor desculpe outra vez, mas essa linguagem...

— Babaquice! Ba-ba-qui-ce! Eu me entendo com vocês na língua que vocês usam e nela não há melhor palavra para o caso. Deixe dessa mania cretina de achar que eu falo como sacristão de chanchada.Que é que você acha que eu estaria dizendo, em linguagem moderna, no tempo em que eu chamava uns e outros de raça de víboras? Isso hoje em dia é a mesma coisa que... Deixa pra lá, não quero mexer na sua cuca, que eu sei que não é das mais equilibradas. Eu acho esse negócio de abraçar lagoa, abraçar prédio, fazer passeatinhas de azaração, botar florzinha, acho isso tudo babaquice.

Ou esperteza, porque assim vocês aplacam a consciência culpada.

Me homenagear não é chegar à Europa dando vexame e passando por mentiroso, para dizer que esta minha estátua é Maravilha do Mundo.

Homenagem mesmo seria vocês lutarem a sério para resolver seus problemas, conforme eu ensinei.

— Mas o senhor disse que, quando se é esbofeteado numa face, se deve oferecer a outra.

— Lá vem burrice. As Escrituras são aparentemente contraditórias porque a vida é contraditória, rapaz.

Então existe a hora de dar a outra face e a hora de fazer o que eu fiz no Templo, quando botei aquela corja de agiotas safados para fora de lá debaixo de porrada.

— Então o senhor está aconselhando que a gente...

— Eu não estou aconselhando nada, o mundo foi entregue a vocês.

Só conte o que eu lhe disse, basta isto. Juízo, e até logo.

As nuvens que lhe cercavam a cabeça se espessaram, ele sumiu na bruma, voltou o silêncio da madrugada e eu saí do terraço. Até logo? Bem, pelo menos o terraço é à direita dele. Atrás, mas à direita, pensei e me benzi.

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