Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 28, 2007

VEJA ENTREVISTA Stuart Gilman


Corrupção tem remédio...

...desde que haja fiscais qualificados, a sociedade
seja vigilante e os culpados sejam punidos. É o
que diz o especialista das Nações Unidas


Camila Pereira

Divulgação
"Corrupção não é um crime sem vítimas. Na verdade, as vítimas podem ser contadas aos milhões"

Há trinta anos, o cientista político americano Stuart Gilman se dedica a uma mesma tarefa: a de descobrir, nos diferentes países que visita, como é possível evitar que as pessoas pratiquem (ou proponham) ações indevidas em troca de dinheiro – ou seja, como se pode evitar que elas corrompam ou se deixem corromper. Chefe do Programa Global da ONU contra a Corrupção, sua missão é coordenar os programas de combate ao problema que as Nações Unidas desenvolvem junto a uma série de países – entre eles, o Brasil. Antes de embarcar para Brasília, aonde chega nesta segunda-feira, Gilman falou a VEJA de seu escritório em Viena. Disse o que facilita e o que desestimula a corrupção, defendeu a criação de agências independentes para vigiar o poder público, contou que viu países "renascer das cinzas" depois de passar por um intenso programa de combate a esse tipo de crime e apontou os estragos que ele provoca na economia e na vida política de uma nação. "Um país que admite a pequena corrupção abre caminho para que ocorram grandes esquemas", afirmou.

Veja – O senhor estuda o tema da corrupção há trinta anos e já participou da implantação de programas de combate ao problema nos cinco continentes. O que o senhor diria que existe em comum entre os países que enfrentam os piores problemas de corrupção?
Gilman – Um passado ditatorial certamente ajuda. Países que passaram por regimes autoritários, como os do Leste Europeu, tendem a desenvolver uma cultura de corrupção maior pelo fato de serem menos transparentes, mais fechados. Outro elemento que interfere nessa situação é o grau de controle que o estado tem sobre a economia. Quanto maior ele é, mais alto é o nível de corrupção. Isso porque você cria uma burocracia estatal enorme, que, por sua vez, abre centenas de caminhos para o desvio de dinheiro público. Em terceiro lugar, nos países com alta incidência de corrupção, o número de funcionários públicos tende a ser também muito grande. Neles, o serviço público é usado não exatamente para servir os cidadãos, mas para reduzir o desemprego. Isso resulta em baixos salários e, portanto, em mais tentação para roubar. Mas é preciso deixar claro que corrupção existe em todos os países. O que vai determinar se ela será grande ou pequena é, acima de tudo, a capacidade de os governantes desenvolverem mecanismos para prevenir ao máximo o problema, criando um ambiente desfavorável para o crime. É preciso também garantir que, se as pessoas forem corruptas, elas serão pegas e punidas de fato.

Veja – Como se desenvolvem esses mecanismos?
Gilman – Antes de tudo, é necessário que o combate à corrupção saia da esfera do discurso e adentre a da ação. Sem isso, nenhum programa vai para a frente. Outro aspecto fundamental é diagnosticar a situação com precisão. É comum que se incorra no erro de combater o problema a partir de percepções genéricas e, muitas vezes, equivocadas. Avaliações precisas ajudam a traçar estratégias mais focadas e, portanto, mais eficazes.

Veja – O senhor poderia dar um exemplo?
Gilman – A África do Sul. O sistema judicial nesse país era considerado um grande foco de corrupção. Em 2005, uma pesquisa feita por nós constatou que metade dos entrevistados acreditava nisso. Apenas um em cada 1 000 entrevistados, no entanto, dizia ter pago propina a um oficial de Justiça. Ao fim do trabalho, foi possível concluir que o maior problema do sistema judicial do país não era a corrupção, e sim a ineficiência. O que ocorria era que as pessoas associavam a perda de provas e o arquivamento de casos à corrupção, quando, na maior parte das vezes, esses problemas eram fruto de incompetência pura e simples. O diagnóstico fez com que o governo percebesse que sua prioridade não deveria ser o investimento num programa anticorrupção, mas a adoção de medidas que dessem mais eficiência ao sistema judicial. Foi o que se fez.

Veja – O senhor está vindo ao Brasil para, entre outras coisas, dar continuidade a um programa anticorrupção que a ONU desenvolve em parceria com a Controladoria-Geral da União (CGU). O que já foi feito até agora?
Gilman – Oferecemos um treinamento para o pessoal da CGU sobre técnicas para detectar corrupção – mais especificamente, crimes financeiros. Afinal de contas, não adianta nada investigadores terem acesso a milhares de documentos se eles não souberem interpretar os dados de modo a permitir que identifiquem onde estão os esquemas. Uma próxima etapa importante será a realização de pesquisas para entender melhor as vulnerabilidades do país em relação à corrupção. Como já disse, avaliações precisas resultam em estratégias mais eficazes. O Brasil tem particularidades, como o grande número de estados da federação, que exigem medidas diferentes das adotadas em outros países. Por isso, vamos nos reunir também com os governos estaduais para discutir a questão. Por fim, a ONU quer enfatizar no Brasil a necessidade de a sociedade civil e o setor privado participarem do enfrentamento do problema. O interesse é de todos. Se a discussão for apenas entre partidos políticos, a situação nunca se resolverá.

Veja – O senhor já disse que prevenir a corrupção é a primeira forma de combatê-la. Como é possível prevenir que as pessoas roubem?
Gilman – Vigiando-as, é claro. A criação de agências independentes que fiscalizem de perto e continuamente o poder público é fundamental para desestimular o crime. Essas agências podem verificar, por exemplo, se, depois que o governo liberou verbas para a construção de uma escola, a escola foi realmente erguida. Parece engraçado, mas em muitos países isso não ocorre. Outra maneira eficiente de prevenir a corrupção nos governos é fazer uma triagem permanente de funcionários. Na Albânia, há cerca de três anos, o governo submeteu todos os fiscais responsáveis pela coleta de impostos a um teste de integridade, para avaliar a conduta de cada um. Nesse tipo de avaliação, investiga-se se há compatibilidade entre os valores que cada fiscal deveria ter arrecadado e o dinheiro que realmente entrou nos cofres do governo. Ou, ainda, se os funcionários têm um padrão de vida compatível com seus salários. Fiscais colocados sob suspeita chegam a receber ofertas de propina de policiais disfarçados. Ao final do processo na Albânia, aproximadamente metade dos funcionários foi demitida. No ano seguinte, a arrecadação praticamente triplicou. Mas prevenção, sozinha, não resolve o problema. É preciso combinar prevenção e punição. E, quando falo de punição, não estou falando apenas da punição na esfera criminal. É interessante observar que, nos países que desenvolveram os melhores sistemas de combate à corrupção, as sanções são em grande parte administrativas ou cíveis.

Veja – O senhor está dizendo que as punições, para funcionar, não precisam ser severas?
Gilman – Exatamente. Muitos países acreditam que, quanto mais severa a pena de prisão, menor a corrupção. Mas há lugares onde conseguir um emprego é uma tarefa dificílima e ser demitido do serviço público pode ser tão terrível quanto ir para a cadeia. Além disso, penas administrativas, em geral, são aplicadas de maneira muito mais rápida do que as criminais: os processos na Justiça costumam se arrastar por anos. Outra coisa importante é impedir que o dinheiro escape. Muitos corruptos ficam felizes em ir para a cadeia por um ano se podem colocar 10 milhões de dólares em um banco nas Bahamas. É preciso garantir que os corruptos não tenham segurança para roubar, mas também que seu dinheiro não fique seguro. Na Nigéria, que é conhecida por seus problemas com a corrupção, a Comissão de Crimes Econômicos e Financeiros do país fez um trabalho com a ajuda da ONU. Nos últimos três anos, conseguimos resgatar 3 bilhões de dólares que estavam espalhados pelo mundo, fruto de desvios da corrupção. Isso ajuda a desestimular o crime.

Veja – No Brasil, temos casos de políticos que, mesmo com processos criminais em andamento ou depois de renunciar para evitar um processo de cassação, acabam se reelegendo. É possível impedir que isso aconteça?
Gilman – Políticos desonestos são eleitos e reeleitos em muitos países. Nos Estados Unidos, por exemplo, um parlamentar foi reeleito no ano passado depois de a polícia encontrar 100 000 dólares em dinheiro vivo dentro de seu freezer. Então, impedir que isso ocorra é difícil. Mas o importante, nesses casos, é evitar que isso se torne a regra. A própria instituição parlamentar pode tentar dificultar a atuação de um deputado contra quem existam fortes acusações de corrupção. No Quênia e na Nigéria, por exemplo, assim que é aberta uma ação penal contra um parlamentar, ele perde o direito ao voto nas sessões do Congresso. Ainda conservará seu mandato, mas essa sanção o enfraquece.

Veja – Mesmo quando a corrupção já atingiu níveis muito altos, ainda é possível falar em prevenção?
Gilman – Sem dúvida. Eu vi países ser reerguidos das cinzas por meio de programas anticorrupção. Hong Kong é um caso exemplar. Há trinta anos, quando a então colônia britânica se mobilizou para combater o problema, a corrupção estava tão alastrada que, se fosse preciso demitir todos os funcionários públicos suspeitos, não sobraria nenhum. Hoje, Hong Kong não tem mais do que uma dúzia de servidores denunciados por ano. O modelo que funcionou para eles combinou punição efetiva com mecanismos de prevenção. Depois de uma decisão controversa de conceder anistia a todas as pessoas acusadas em escândalos até então, anunciou-se que, a partir daquele momento, qualquer desvio de conduta seria punido com rigor. E isso realmente foi feito, com ampla publicidade para as prisões e demissões de corruptos que se seguiram. Outra coisa que deu certo foi envolver a população no processo. Por intermédio de um excelente escritório de comunicação, o governo abriu canais para as pessoas fazerem denúncias e se esforçou para mantê-las informadas sobre todas as ações anticorrupção. Também se preocupou em educar a sociedade. Por meio de aulas em escolas e outras iniciativas, as crianças de Hong Kong aprendem, desde cedo, por que a corrupção é ruim para o país.

Veja – Qual é o impacto que a corrupção tem sobre a economia?
Gilman – O Banco Mundial estima que, nos países onde os índices de corrupção são mais altos, como o Congo, entre 25% e 30% do PIB seja desperdiçado em decorrência do problema. Em países onde a corrupção está sob controle, esses valores não ultrapassam os 3%. Isso ocorre, sobretudo, porque a corrupção afasta os investidores. As grandes companhias internacionais, evidentemente, preferem investir em países onde não têm de pagar propinas.

Veja – Além do impacto sobre a economia, que outros prejuízos a corrupção acarreta para um país?
Gilman – Se a corrupção não é controlada, destrói-se um dos valores fundamentais de uma democracia: a confiança da população no governo e nas instituições. Isso é muito ruim porque, em última instância, abre caminho para regimes autoritários. Em um cenário de falência das instituições democráticas, as pessoas podem se deixar levar pela idéia de que a corrupção está ligada à democracia. Isso porque, nas ditaduras e em outros regimes fechados, embora a corrupção exista, ela não é visível. Na Tailândia, no ano passado, uma junta militar depôs o governo legítimo usando como justificativa os sucessivos escândalos de corrupção em que o primeiro-ministro estaria envolvido. O golpe teve apoio popular. É fundamental não perder de vista esses impactos negativos da corrupção: ela leva ao colapso econômico e à desconfiança da população em relação aos governos, além de alimentar muitos outros males sociais.

Veja – Que males são esses?
Gilman – Tráfico de seres humanos, tráfico de drogas, crime organizado e até terrorismo são ajudados ou sustentados pela corrupção. Há três anos, dois aviões russos explodiram em um atentado terrorista. As duas mulheres que entraram nos aviões e mataram quase uma centena de pessoas pagaram pouco mais de 50 dólares cada uma para conseguir embarcar sem ser revistadas pela segurança do aeroporto. É uma propina bem barata, mas corrupção não precisa ser cara. O funcionário que recebeu a propina está na cadeia, mas isso não traz as vidas de volta. Pense agora no tráfico de seres humanos e de drogas. Como você consegue cruzar a fronteira com pessoas sem pagar propina a um oficial da imigração? Como você passa grandes carregamentos de cocaína pelas fronteiras? É essencial salientar essas conexões, porque, do contrário, as pessoas podem continuar pensando: "Eu paguei uma cervejinha a um policial, para ele não me multar, mas que mal há nisso?". Pois é, o problema é que um país que admite a pequena corrupção abre caminho para que ocorram grandes esquemas. Corrupção não é um crime sem vítimas. Na verdade, as vítimas podem ser contadas aos milhões.

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