Entrevista:O Estado inteligente

sábado, julho 21, 2007

Infraero: incompetência e corrupção

VEJA ESPECIAL

As autoridades são
outra catástrofe

O acidente de Congonhas revela como é enfrentado
o caos aéreo: com incompetência, negligência, cinismo
e deboche. Para não falar da corrupção, é claro


Diego Escosteguy e Otávio Cabral

Marcelo Liso/AFBPress

A MÍMICA DOS INDECENTES
Funcionários da Infraero, a estatal responsável pela administração dos aeroportos, riem diante da tragédia, indiferentes à cena aterradora dos corpos carbonizados sendo retirados dos escombros. Abaixo, o assessor do presidente Lula, Marco Aurélio Garcia, e um auxiliar comemoram com gestos obscenos a notícia de que uma falha mecânica pode ter causado o acidente – o que, só na fantasia deles, livraria o governo de suas evidentes responsabilidades


Ag. O Globo



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Quadro: Tragédia administrativa

Congonhas, pouco depois das 3 e meia da madrugada de quarta-feira. Da cabeceira da pista, debaixo de uma garoa forte, um grupo de funcionários da Infraero observava o trabalho dos bombeiros. Naquele instante, as chamas estavam praticamente extintas e começava a etapa mais dramática de toda tragédia – o resgate dos corpos das vítimas. O grupo estava a aproximadamente 100 metros do local onde o Airbus explodiu depois de se chocar com o prédio da TAM. Um dos funcionários da Infraero, João Brás Pereira, supervisor do aeroporto, tinha uma visão privilegiada da tragédia. Do lugar em que estava, do alto, era possível enxergar com clareza um cenário capaz de despertar sentimentos variados, como tristeza, dor, revolta ou consternação. Mas ele e os outros funcionários da Infraero estavam rindo. Apontavam para o lugar da tragédia, faziam algum comentário e riam. Riram durante quase cinco minutos, até perceber que estavam sendo fotografados. A Infraero é a estatal responsável pela administração dos aeroportos do país. Está na linha de frente na escala de responsabilidade pelo caos aéreo que assombra o Brasil há mais de dez meses. Não se sabe exatamente do que os funcionários da estatal achavam graça. Certamente não era – é melhor acreditar – dos corpos carbonizados ou da destruição provocada pelo acidente.

Brasília, pouco depois das 8 da noite de quinta-feira, dois dias depois do acidente. No 3º andar do Palácio do Planalto, o assessor especial da Presidência, Marco Aurélio Garcia, e seu auxiliar, Bruno Gaspar, foram flagrados assistindo e comemorando uma notícia do Jornal Nacional, da Rede Globo, que apontava uma possível falha mecânica no avião da TAM como provável causa do acidente – o que, só na fantasia deles, livraria o governo de qualquer responsabilidade. Felizes e sem saber que havia uma câmera apontada para eles, Marco Aurélio Garcia e o auxiliar extravasaram sua satisfação com gestos obscenos. Informado do flagra, o assessor do presidente, inicialmente, negou a comemoração, mas, confrontado com as imagens, disse que os gestos eram uma reação privada captada de maneira clandestina pela televisão. Ou seja, ninguém tinha nada a ver com aquilo. Depois, em nota, tentou politizar o episódio: "O sentimento que extravasei em privado foi e é de repúdio àqueles que trataram sordidamente de aproveitar a comoção que o país vive para insistir na postura partidária de oposição sistemática a um governo duas vezes eleito pela imensa maioria do povo brasileiro". Traduzindo: o importante para o assessor presidencial é mostrar à sociedade que o governo nada tem a ver com o acidente. O resto – os mortos, a tragédia, o caos aéreo – é mero detalhe. Top, top, top para quem não concordar.

Adriano Machado/AE

O PRESIDENTE SUMIU
Preocupado com a própria imagem, Lula preferiu cancelar a agenda para evitar explicações sobre o caos aéreo. Só voltaria à cena dali a três dias

A cena dos funcionários da Infraero rindo diante do horror e a mímica grotesca dos assessores presidenciais personificam não só o escárnio como também a desídia com que as autoridades governamentais têm enfrentado o problema do caos aéreo desde seu início, em outubro do ano passado. A culpa pelo acidente da TAM pode ser da pista inacabada de Congonhas, de um defeito mecânico do avião, de um erro do piloto, da chuva, do acaso, de tudo isso combinado. A única certeza é a parcela de responsabilidade do governo pela tragédia. Da manutenção dos aeroportos à fiscalização dos aviões, tudo passa – ou deveria passar – pelo crivo dos órgãos federais que cuidam da aviação. Os riscos do excesso de pousos e decolagens em Congonhas eram conhecidos desde 2003. A solução era reduzir o movimento do aeroporto, redistribuindo rotas, como se fez no Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, e na Pampulha, em Belo Horizonte. E por que isso não foi feito em Congonhas? Em abril do ano passado, seis meses antes do apagão aéreo, a Anac, a agência federal que fiscaliza a aviação, reuniu-se com representantes das companhias aéreas para discutir o problema. Chegou a elaborar um plano de contingência para desafogar Congonhas, que previa o desvio de rota para outros aeroportos e o fechamento de uma das pistas – a principal – para reforma. A Anac, porém, capitulou diante da pressão das companhias aéreas, que têm em Congonhas sua principal fonte de lucros. Em atenção às empresas, ficou acertado que apenas a reforma da pista principal, que operava em condições precárias, seria executada. O projeto de reduzir os vôos foi engavetado.

Nem mesmo o cronograma de reforma da pista principal do Aeroporto de Congonhas foi pautado pelo nobre interesse público. O início das obras, que eram emergenciais, foi adiado duas vezes. Ainda não havia o caos aéreo, mas os técnicos da Infraero e da Anac já haviam observado que o simples fechamento da pista principal já provocaria problemas na operação de todos os aeroportos do país. Como era ano eleitoral, as autoridades, que estavam preocupadas apenas com o bem-estar do governo, advertiram que a execução do trabalho poderia causar problemas políticos. "Por isso, achamos melhor deixar para depois", conta um graduado assessor da Infraero com acesso ao Palácio do Planalto. As eleições passaram, veio o apagão aéreo, e a reforma continuou sendo adiada. O brigadeiro José Carlos Pereira, que assumiu a presidência da Infraero no fim do ano passado, chegou a desabafar com amigos: "Não tem jeito. As empresas aéreas não deixam começar a reforma. Não sei mais o que fazer". Os amigos perguntaram, então, se o brigadeiro não poderia enfrentar as empresas. Disse José Carlos Pereira, de acordo com o relato de um dos confidentes: "Eu estou num mandato-tampão. Não tenho poder para nada". Por pressão do Ministério Público, que ameaçava pedir a interdição do aeroporto, a reforma começou em maio último e as empresas se comprometeram, enquanto durassem as obras, a desviar 40% dos vôos de Congonhas para Guarulhos. Mas nem isso foi cumprido, segundo a Infraero. E mais: para deixar claro quem manda na aviação brasileira, a pista principal foi reaberta sem as ranhuras de segurança previstas, atendendo mais uma vez à pressão das empresas.

Ed Ferreira/AE

SÓ PODE SER ZOMBARIA
Milton Zuanazzi apareceu em público apenas para receber uma medalha pelos bons serviços prestados: a quem?

A supremacia das companhias aéreas sobre o poder público ficou ainda mais evidente depois da tragédia. As autoridades diretamente responsáveis pelo setor simplesmente sumiram. Assim que soube do acidente com o avião da TAM, o presidente Lula montou um "gabinete de crise" e convocou uma reunião no Palácio do Planalto. Após quase seis horas de conversa com quatro ministros, que invadiu a madrugada de quarta-feira, Lula tomou a magnífica decisão de se esconder, seguindo orientação de assessores palacianos. Eles avaliaram que o presidente não deveria aparecer em público para evitar ser cobrado sobre a responsabilidade do governo. Com o caos aéreo umbilicalmente ligado à inoperância federal, o presidente poderia desgastar-se ainda mais tentando explicar o inexplicável. Assim, todos os compromissos previstos na agenda foram cancelados até sexta-feira. Lula ficou os dois dias seguintes ao acidente envolvido com os chamados "compromissos internos", ouvindo assessores e acompanhando o desenrolar das investigações da tragédia. Sobre os mortos, apenas uma lacônica nota oficial de solidariedade às famílias.

Mesmo se a investigação concluir que houve falha humana ou mecânica, o governo avalia que o acidente atingirá a popularidade de Lula. "Ele ficará marcado pelo apagão aéreo, pelos acidentes, pela falta de medidas de combate à crise. Afinal, foram quase 400 mortos em menos de um ano. Não importa qual é a causa. O desgaste está posto", diz um dos ministros que participam do gabinete de crise. Numa das reuniões diárias com os assessores mais próximos, Lula fez uma autocrítica. Avaliou que deixou o caos aéreo "correr solto", confiando que seria resolvido naturalmente. Que deixou de tomar atitudes mais efetivas, como a desmilitarização do controle de vôo, o afastamento da diretoria da Infraero e a demissão do ministro da Defesa, Waldir Pires. Disse também que falhou ao não punir ministros que fizeram comentários infelizes sobre a crise. Caso de Marta Suplicy, do Turismo, que aconselhou os passageiros a "relaxar e gozar" em caso de atraso dos vôos. De Guido Mantega, da Fazenda, que disse que a crise é só uma conseqüência inevitável do bom desempenho da economia. E de Waldir Pires, que, ao depor à CPI do Apagão Aéreo da Câmara, preferiu reclamar do salário a propor medidas para conter a crise. Sobre os mortos, nenhuma palavra.

As autoridades só começaram a sair da clausura na sexta-feira, talvez com os espíritos mais altivos diante dos desdobramentos do efeito Marco Aurélio "Top, Top, Top" Garcia. O presidente da Anac, Milton Zuanazzi, apareceu na Base Aérea de Brasília para receber uma medalha por relevantes (não se sabe quais) serviços prestados à Aeronáutica. Zuanazzi estava à vontade e chegou a sorrir ao receber a comenda. Por causa da tragédia, a solenidade foi discreta, sem banda de música nem acrobacias aéreas. O comandante da Aeronáutica não fez nenhum comentário sobre a crise. Antes da solenidade foi feito um minuto de silêncio em homenagem às vítimas de Congonhas. O comandante da Aeronáutica, Juniti Saito, nada disse sobre o acidente e fez um discurso no qual destacou as qualidades do brasileiro Santos Dumont. Waldir Pires, o ministro da Defesa, que estava sumido, continuou desaparecido. Já o presidente Lula reapareceu na televisão na noite de sexta-feira, três dias depois da tragédia, para se solidarizar com as famílias das vítimas. Em seu pronunciamento, Lula anunciou medidas para diminuir o tráfego em Congonhas, a construção de um novo aeroporto em São Paulo e o fortalecimento da Anac. A impressão de que tudo será feito tarde demais – se for feito – permanecerá incancelável.

A GAMBIARRA NO AEROPORTO SANTOS DUMONT

Patrícia Santos/AE
O andar do novo terminal incendiado: falta de fiscalização na obra

Poucas horas antes da queda do avião da TAM, em Congonhas, os cariocas se assustaram com a coluna de fumaça que subiu do Aeroporto Santos Dumont, às margens da Baía de Guanabara. O incêndio no 3º andar do terminal recém-inaugurado, que abrigará uma praça de alimentação, teve como origem mais provável um curto-circuito numa instalação elétrica provisória nas obras de ampliação do aeroporto. Segundo o perito federal Luis Carlos Serpa, a fiação apresentava vários pontos sujeitos a um curto. O que permanece sem explicação é como se pôde utilizar a popular gambiarra numa obra cujo valor total supera os 334 milhões de reais. O fogo foi alimentado por 300 cadeiras embaladas em plástico que estavam guardadas ali – outro fato que denota descuido e falta de fiscalização. Não passou de um susto, mas poderia ter sido mais uma tragédia. Circulam pelo aeroporto 10 000 passageiros por dia. A ampliação do Santos Dumont, entregue ao consórcio formado pelas empreiteiras Odebrecht, Carioca Engenharia e Construcap Engenharia, só deverá estar inteiramente concluída em novembro. Uma primeira parte, que inclui os balcões de check-in e salas de embarque, foi aberta no fim de maio, antes do começo dos Jogos Pan-Americanos. Seu principal mérito é ampliar a capacidade do aeroporto, contribuindo para desafogar o tráfego aéreo no país. É das poucas obras recentes da Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária (Infraero) realmente necessárias. Mas tão imperativo quanto executá-la é fazê-lo com todas as cautelas necessárias. O Brasil não pode mais conviver com gambiarras.



O QUE AS AUTORIDADES DISSERAM DURANTE A CRISE

O caos tomou conta da aviação nacional depois que o vôo 1907, da Gol, foi atingido por um jato Legacy, em setembro do ano passado. Desde então, o setor aéreo sofreu panes sucessivas, e as autoridades combinaram ineficiência com declarações desastrosas

Valter Campanato/ABR
Denise Abreu


29 DE SETEMBRO DE 2006

O vôo 1907, da Gol, colidiu com o jato Legacy

"Vocês são inteligentes. O avião caiu de
11 000 metros de altura. O que vocês esperavam? Corpos?", disse Denise Abreu, diretora da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), aos parentes das vítimas

26 DE OUTUBRO DE 2006

Nas vésperas do feriado de Finados, os controladores de vôo fizeram uma operação-padrão nos aeroportos

"É uma crise de natureza emocional", analisou Waldir Pires, ministro da Defesa

5 DE DEZEMBRO DE 2006

Celso Junioro/AE
Tarso Genro

O sistema de rádio do Cindacta 1 falhou

"Acho que o problema já está controlado", disse o presidente Lula

"Não pode haver uma pressa neurótica e temperamental. É preciso uma ação técnica e científica para preservar a vida (dos passageiros)", afirmou Tarso Genro, então ministro das Relações Institucionais

NATAL DE 2006

O overbooking praticado pela TAM lotou os aeroportos, e passageiros passaram as festas dormindo nos saguões

"Tudo isso demonstra que está aumentando a capacidade de viajar do povo brasileiro", disse o presidente Lula

21 DE MARÇO DE 2007

Pane no Cindacta 2, de Curitiba, causou nova onda de atrasos

"Quero prazo, dia e hora para anunciar ao Brasil que não vai ter mais problema nos aeroportos", disse o presidente Lula

30 DE MARÇO DE 2007

Os controladores de vôo entraram em greve na véspera da Semana Santa

"Fui apunhalado pelas costas", disse Lula

"A crise no transporte aéreo brasileiro está longe de ser uma crise", declarou Milton Zuanazzi

9 DE JUNHO DE 2007

Ed Ferreira/AE
Ueslei Marcelino/Folha Imagem
Marta Suplicy Guido Mantega

A neblina fechou os aeroportos de São Paulo e causou atrasos no resto do país

"Relaxa e goza", aconselhou Marta Suplicy, ministra do Turismo

"É a prosperidade do país: mais gente viajando, mais aviões, mais rotas", explicou Guido Mantega, ministro da Fazenda

"Não há risco nenhum para a segurança de vôo no Brasil", garantiu José Carlos Pereira





Fotos Adriano Machado/AE, Adre Dussek/AE, Sergio Lima/Folha ImagemAg. Luz/ABR., Wilson Dias/ABR, Sergio Casarto/AE, Givaldo Barbosa/Ag. O Globo

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