o globo
É bom para a nossa tão necessitada auto-estima saber que o mundo mais uma vez se curvou diante de nossa capacidade de organizar a massa e promover gigantescas celebrações como o alegre e pacífico megashow dos Rolling Stones. E que isso foi apenas um exemplo do que estamos habituados a realizar todos os anos nas areias de Copacabana (a novidade é ter sido fora de hora, não no Réveillon). Os gringos nunca entenderam como a “capital da violência” consegue juntar nas praias um milhão, dois milhões de pessoas sem conflitos. Aliás, nem nós entendemos direito.
Ainda bem que The New York Times, Guardian, Clarín e BBC não tomaram conhecimento do que quase simultaneamente acontecia não muito longe dali, numa pacata rua do Engenho de Dentro, bairro da Zona Norte da cidade. Uma cabeça decepada fora deixada em cima do capô de um carro, dentro do qual havia partes dos corpos de dois jovens negros esquartejados.
Chocada, a repórter Elvira Lobato entrevistou os moradores e ficou ainda mais chocada, já que eles não demonstravam qualquer espanto. Alguns tinham ido buscar os celulares para fotografar a cena, outros, mais jovens, se divertiam. Um estudante explicou por que achava graça de ver extirpados e expostos o coração e os intestinos de uma das vítimas: “Ri porque é engraçado ver um corpo todo picado”. Um motoboy contou para a repórter a piada que fez quando se deparou com o espetáculo: “Eu gritei: ‘está nervoso e perdeu a cabeça?’”. Mesmo os que não riram acharam “normal” aquele infame castigo imposto por traficantes a seus devedores.
Sempre que nos deparamos com essa disparidade de rituais, o de festa civilizada e outro de barbárie, nós nos perguntamos angustiados: quem é afinal o carioca – um homem cordial ou um ser cruel? Há pesquisas e testemunhos, inclusive de estrangeiros, mostrando como podemos ser gentis e hospitaleiros, assim como existem teses acadêmicas sobre nosso modo de ser violento. Não conheço, no entanto, estudos explicando a coexistência dos dois comportamentos: quando e por que somos uma coisa e outra, violentos no dia-a-dia e pacíficos ao nos juntarmos para a celebração.
Será que sofremos do que a psiquiatria chama de transtorno bipolar? No plano individual, a síndrome se caracteriza por uma oscilação entre a euforia e a depressão, com surtos alternados de episódios contrastantes. Talvez não seja nada disso, mas “apenas” o choque entre a vocação hedonista da maioria e a banalização do terror produzida por uma minoria. A insensibilidade daquelas pessoas diante dos corpos mutilados seria resultado não da maldade de cada um, mas da repetição do que estão acostumados a ver. O horror também anestesia.