Possivelmente já morri. Dois grandes shows no Brasil, atraindo milhares de pessoas, e busquei o conforto da televisão, com direito a intervalos para o banheiro.
Um dos shows, o dos Stones, aconteceu perto da minha casa. Desde cedo senti uma atmosfera de euforia na zona sul. Muita gente, carros na calçada, chope, calor, as vozes nos bares subindo como se mãos invisíveis aumentassem o volume do som, através do balcão.
Calculei que era melhor a TV. Claro que meu cálculo seria mais acertado com melhor qualidade de imagem e de som. Mas ainda não chegou a TV digital. O governo discute muito sobre o padrão a ser adotado. Temo, a julgar pela experiência com câmeras e celulares, que, ao tomarem a decisão final, o quadro de opções já estará mudado. Os ritmos da tecnologia não respeitam os da política.
Os shows me alegraram. Escrevi algumas vezes sobre como o 11 de Setembro e as tensões que iria gerar abriam uma possibilidade nova para o Brasil. Guerra no Oriente Médio, atentados em metrópoles européias e, agora, todos os conflitos em torno das charges de Muhammad confirmaram essa tendência.
Meus escritos, na época, eram endereçados aos ministros da Cultura e do Turismo. Pensei então que, sendo a paz o fundamento básico de nossa política externa, poderíamos nos abrir para grandes festivais que tratassem, diretamente ou não, do assunto.
Na verdade, não acredito muito no lado explicitamente político desses shows. Mesmo Bob Marley, vindo dos bairros pobres de Kingston, tinha um discurso para a juventude negra na Europa, mas era ouvido por milhares de pessoas que não se interessam especificamente por isso.
Bono veio falar da fome. Tudo bem. Já no último Live Aid, produzido por Bob Geldoff, intelectuais etíopes lembravam que o combate central à fome vai se dar pela correção das distorções no comércio internacional. Bono sabe disso pois freqüenta Davos, e lá essas coisas são mencionadas, ao menos de vez em quando.
Da mesma maneira, a tolerância religiosa é um tema bom para ser lançado de São Paulo. Das metrópoles que conheço, foi uma das que resolveram de forma satisfatória a convivência entre as religiões. Bono falou o nome de alguns Estados, mas, com a sensibilidade da história irlandesa e da atualidade do Oriente Médio, poderia ter ressaltado esta característica diante de seus olhos.
Grandes estrelas pop sempre vão visitar presidentes e dirão coisas sem nenhuma responsabilidade com a repercussão na política interna. Isto pode se dar de barato. O próximo show, por exemplo, é de Santana: possivelmente vai se dançar mais.
A passagem dos Stones e do U2 reafirma para mim não só análise do passado sobre as chances turísticas culturais do Brasil mas lembra também que não conseguimos neutralizar nossa principal vulnerabilidade: a falta de uma política consistente para atenuar a violência urbana.
Na medida em que o Brasil se abrir para esses festivais de verão, novos grupos aparecem e com posições as mais variadas sobre política, desde uma distância saudável até a hostilidade.
Portanto, a sensação de que esses festivais favorecem um ou outro partido é passageira. O que está pela frente é a possibilidade de se ampliar o turismo, criar um nicho, já tentado pelo Rock in Rio, e fazer do país uma plataforma para a cultura de paz, o que daria uma dimensão popular ao fundamento de nossa política externa.
Para confirmar que morri, vou me fechar no Carnaval, soterrado por textos inacabados, relatórios e, como diz um amigo, muita costura para fora. O governo tem tempo para refletir sobre essa possibilidade turística e interferir de forma positiva. Os cálculos do Rio mostraram resultado favorável do ponto de vista econômico.
O que o governo deveria apressar mesmo é a decisão sobre a televisão digital. A vida dos que ficaram em casa, poderia ter sido enriquecida por uma imagem com definição maior, um som mais límpido. São respostas que dependem de base técnica e a forma de consulta ampla, por mais democrática que pareça, nem sempre atinge os melhores resultados.
Se até o ano que vem isso não estiver resolvido, o caminho será voltar à praia para ouvir os shows. A multidão não é muito diferente da que se concentra no Réveillon. O dilema será: ela ou TV digital? Encerrei prematuramente minha carreira nesses cercadinhos com convites. A única vez que fui, recusei-me a usar as camisetas de propaganda. Saí com um gosto de nunca mais.
Entre a multidão e cercadinhos, mil vezes a multidão. Creio que ela não se sentirá traída se eu optar pela minha casa. Aquela imagem dos celulares acesos no Morumbi mostra que até mesmo as pessoas comprimidas na praia ou no estádio terão o espetáculo na palma da mão.
Ao mencionar os celulares acesos e ligá-los às possibilidades da TV digital, os técnicos vão supor que tomo posições. Mas os técnicos sabem que nada entendo do assunto. É apenas o palpite de alguém que não apenas quer se libertar do analógico, mas também dos fios. Hoje já se faz quase tudo nos celulares. Por que não mostrar os grandes shows?
Entrevista:O Estado inteligente
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sábado, fevereiro 25, 2006
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