Em fase de populismo explícito,
Kirchner e Vázquez transformam
uma divergência ambiental em
disputa internacional
Ruth Costas
Miguel Rojo/AFP | Pablo Porciuncula/AFP |
Tabaré Vázquez: ele diz que, como em uma letra de tango, o Uruguai está sendo punido pelo que não fez nem vai fazer | Kirchner transformou a causa dos ecologistas em uma "questão nacional": apelação ao tribunal internacional |
Uma divergência ambiental envolvendo a construção de duas fábricas de celulose no lado uruguaio da fronteira com a Argentina começou a ganhar, na semana passada, proporções inusitadas para um problema tão prosaico. As indústrias em questão – uma da empresa espanhola Ence e a outra da finlandesa Botnia – estão sendo erguidas na cidade uruguaia de Fray Bentos, às margens do Rio Uruguai, que marca a fronteira entre os dois países. A previsão é que comecem a funcionar no ano que vem. Os argentinos reclamam que a fabricação de papel vai poluir o rio e prejudicar o turismo na região. Os uruguaios não querem desistir de um projeto que representa um investimento de 1,8 bilhão de dólares, o maior da história do país, e deve gerar 700 empregos diretos e 2.000 indiretos.
A contenda poderia perfeitamente ter sido tratada na tranqüilidade dos gabinetes, em reuniões de representantes dos dois governos. O oportunismo e o populismo explícito dos políticos argentinos acabaram por adicionar ao debate um ingrediente inesperado – a pátria ofendida. Apoiadas pelo governador da província argentina de Entre Ríos, centenas de ambientalistas e habitantes das cidades próximas ao rio bloquearam duas das três principais estradas que ligam os dois países, em um protesto que se estendeu por mais de vinte dias. Em vez de tentar colocar bom senso nas relações entre dois países vizinhos, parceiros no Mercosul e ligados por estreitos laços culturais, o presidente Néstor Kirchner ajudou a inflar os ânimos dos piqueteiros ao afirmar que a instalação das fábricas se tratava de uma "questão nacional".
Juan Vargas/AFP |
Passeata em Buenos Aires contra fábricas de celulose: o vizinho é muito sujo |
O governo argentino pretende apelar à Corte Internacional de Justiça com a alegação de que o Uruguai violou um tratado bilateral de 1975 ao não informar o vizinho sobre o projeto. A apelação à corte foi aprovada por unanimidade pelo Senado argentino, na semana passada. Em represália, o governo do uruguaio Tabaré Vázquez ameaçou levar o caso à Organização dos Estados Americanos (OEA) e lembrou que a livre circulação entre os países é uma das garantias do Mercosul. Não é fácil entender o que leva dois países a se engalfinharem a tal ponto numa disputa por tão pouca coisa. "A partir do momento em que os governos tomaram para si uma briga iniciada por ambientalistas e políticos regionais, tiraram o foco da questão técnica da disputa e a transformaram em uma causa nacionalista", explicou a VEJA o cientista político uruguaio Miguel Serna, da Universidade da República, em Montevidéu.
Forjar um inimigo externo é a estratégia recorrente entre os populistas latino-americanos para desviar as atenções das mazelas domésticas. O venezuelano Hugo Chávez, amigão de Kirchner, escolheu ir à guerra (de palavras, é bom lembrar) com os Estados Unidos. A Argentina conhece muito bem essa artimanha demagógica. Nos anos 70, ditadores militares na Argentina e no Chile quase foram à guerra pela posse de três ilhas minúsculas no extremo gelado do continente que hoje não interessam a ninguém. Em 1982, o ditador de plantão em Buenos Aires decidiu afrontar a Inglaterra com a invasão das Malvinas. O resultado foi trágico, com os pobres recrutas argentinos impiedosamente surrados pelas tropas de Margaret Thatcher.
O episódio das fábricas surpreende porque o risco de impacto ambiental nem sequer foi comprovado. Um estudo preliminar feito para o Banco Mundial chegou à conclusão oposta: a de que as fábricas têm condições de operar de forma limpa e segura. O presidente Vázquez comparou a atitude argentina com a letra de um antigo tango, em que o homem bate na mulher por suspeitar que ela possa enganá-lo no futuro. "Eles estão nos infligindo um dano real no presente por acreditar que mais tarde poderemos lhes causar um dano hipotético", disse Vázquez. Com o bloqueio das pontes, centenas de caminhões se enfileiravam nas estradas e 50.000 turistas que aproveitariam as férias nas praias uruguaias desistiram da idéia. "O Mercosul nunca passou por um momento tão difícil como este", disse a VEJA o analista político argentino Rosendo Fraga, de Buenos Aires. Com presidentes assim, o Mercosul só pode mesmo passar por momentos difíceis.