Desde que surgiram os chamados movimentos sociais, fossem eles de natureza sindical, associações civis ou grupos de pressão de variada ordem, a base fundamental de suas mobilizações sempre foi uma pauta de reivindicações, transformada em bandeira de luta. Só depois de tentativas frustradas de conquista ou recuperação de direitos é que as pessoas e as famílias se dispunham ao confronto, ao enfrentamento direto, que no mais das vezes implica desrespeito a direitos alheios, na esfera privada (caso de esbulhos possessórios em ocupações de fazendas) ou pública (caso de interdição de estradas, impedindo o direito de ir-e-vir das pessoas) - como ocorre, em se tratando de movimentos de sem-terra.
Mas parece que essa tendência se modifica, no sentido de estabelecer o confronto in limine, antes mesmo da apresentação a quem de direito - a saber, órgãos, instituições e autoridades a que cabem a solução dos problemas em questão - de qualquer pauta de reivindicações. Quer dizer, esbulha-se e "interdita-se" hoje para reivindicar amanhã.
Um grupo de 1.700 pessoas bloqueou por 12 horas a BR-364, em Mato Grosso - na altura da Serra de São Vicente, a 80 quilômetros de Cuiabá -, rodovia que é a principal ligação do Norte de Mato Grosso com os Estados da Região Sudeste do Brasil. Os congestionamentos nos dois sentidos da rodovia chegaram a 15 quilômetros. A entidade que promoveu tal operação é o Movimento dos Trabalhadores Acampados (MTA), que a justifica pela exigência de assentamento de 5.200 famílias, que alegadamente vivem há cerca de cinco anos em 23 acampamentos localizados em todas as regiões de Mato Grosso. O mais estranho é que no Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não existe protocolada pauta alguma de reivindicações desse movimento. E de que viveriam essas 5.200 famílias - que podem representar mais de duas dezenas de milhares de pessoas - acampadas?
Durante a ocupação da rodovia - em que apenas as ambulâncias e carros de polícia podiam passar - dizia o coordenador do MTA em Mato Grosso, Sebastião Silva de Araújo, que as famílias permaneceriam no local por tempo indeterminado. E acrescentava que mesmo que a rodovia fosse desocupada então (como acabou sendo, depois de 12 horas), durante o carnaval haveria de ser novamente interditada. A acusação maior dos militantes emetaístas (devemos chamá-los assim, para distingui-los, por exemplo, de seus colegas emessetistas?) é contra o Incra, pelo fato de o órgão federal incumbido da reforma agrária ser moroso nos processos de desapropriação de terras, para assentamento de sem-terras - mesmo não tendo o Incra registro algum dessas reivindicações, como já lembramos. Eles reclamam da falta de estrutura nos assentamentos, como abastecimento de água, além da "inexistência de programa estrutural de viabilização produtiva e ações de sustentabilidade e comercialização da produção".
Eis uma situação, no mínimo, curiosa: não foi o órgão encarregado da reforma agrária, o Incra, que recebeu a "pauta de reivindicações" dos membros do MTA - e teria tido tempo para recebê-la, se a questão envolve acampados há cinco anos -, mas sim a Polícia Rodoviária Federal, que esteve no local da "interdição" para evitar conflitos e orientar os motoristas que trafegavam pela estrada. Dessa forma, foi o superintendente da Polícia Rodoviária em Mato Grosso, inspetor Clarindo Ferreira da Silva, quem encaminhou a "pauta" do Movimento dos Trabalhadores Acampados ao ouvidor agrário em Brasília, desembargador Gersino José da Silva Filho. Como se vê, os órgãos públicos federais às vezes exercem funções insuspeitadas - pois jamais antes associaríamos a conexão de trabalho entre a Polícia Rodoviária e a Reforma Agrária...
Seja como for, impressiona o fato de um movimento de que pouco ou quase nada se ouviu falar conseguir mobilização com tão grande número de pessoas, de várias regiões, e com tal capacidade de atazanar cidadãos que apenas pretendem exercer seu pleno direito de ir-e-vir, na plena democracia em que julgam habitar.