Entrevista:O Estado inteligente

sábado, fevereiro 25, 2006

A realidade do Estado nacional Miguel Reale

ESTADÃO


Na história do liberalismo e do marxismo há convergências deveras paradoxais; ambos pregaram, doutrinariamente, a diminuição progressiva dos poderes do Estado, o primeiro em prol de uma democracia absoluta, pela redução contínua de sua intervenção no mundo econômico, e o segundo em razão da socialização a ser alcançada. A doutrina do Estado evanescente prevalece, desse modo, nas linhas ideológicas mais opostas.

Na realidade, no plano histórico, com o stalinismo, o que prevaleceu foi o estatismo; e, com a democracia social, dominou a intervenção do Estado na economia. Embora com objetivos diversos, marxismo e liberalismo levaram a conclusões paralelas, mas sem abandonar no plano doutrinário suas teses preferenciais. É sabido que, com a queda do stalinismo, houve queda progressiva do Estado soviético, cuja derrota sobreveio após a política de Mikhail Gorbachev.

Com a globalização, sobretudo no mundo econômico-financeiro, o Estado nacional perdeu forças, não há dúvidas, surgindo governos de composição, com gabinetes das mais estranhas alianças - liberais unidos a comunistas -, com relativa diminuição do poder estatal.

O certo é que não prevaleceu o liberalismo de Hayek, tampouco a política soviética da URSS, que se esfacelou.

De outro lado, no entanto, se continua a pregar o perecimento do Estado nacional, o que é, ainda, a meu ver, o grande engano.

Na atual situação da política universal, está o Estado nacional com graus diversos de força, mas com sinais inegáveis de vitalidade. É que o Estado é uma realidade cultural e não mera criação doutrinária.

A concepção do Estado como simples ordenamento jurídico, como pretendera Kelsen, não encontra apoio na realidade, que se impõe por toda parte como realidade cultural. Tampouco vingou a teoria do ordenamento jurídico mais amplo de Santi Romano.

A historicidade cultural originária, essencial à sociedade, não se harmoniza com o normativo como pura regra a ser cumprida, pois o dever-ser do Direito já é algo de inserido no social, como o demonstra a teoria tridimensional do Direito.

A tridimensionalidade não se aplica somente à Ciência do Direito, mas também é válida para a Sociologia Jurídica, uma vez que o fato social, na ordem ou segundo as linhas de seu desenvolvimento, se verifica com organicidade, sobretudo com normas costumeiras.

A Sociologia demonstra que as relações sociais são transorgânicas, entrelaçando-se em vários sentidos desde as teóricas às pragmáticas, correspondentes às funções múltiplas do ordenamento estatal. É a razão pela qual o Estado é uma realidade, e não o resultado de simples expressões relacionadas, exigindo sempre a função do poder como algo que lhe é essencial.

Diz-se, em suma, que, com o advento da globalização, desapareceu o Estado nacional, mas há duas razões que demonstram que isto não acontece. Em primeiro lugar, o Estado surge como uma razão mínima de relacionamento internacional, por assim dizer, como um ponto de encontro entre o que internacionalmente se ordena. Em segundo lugar, o Estado nacional é sempre o mínimo de garantia comum da realização do pactuado.

Não há dúvida de que a globalização, máxime quando consagrada com a criação de ordenamentos jurídicos de caráter continental, importa na redução dos poderes das entidades estatais, mas há muito tempo foi superada a tese da soberania como um poder absoluto.

No meu entender, é a própria expansão da globalidade que vem justificar a presença atuante dos Estados nacionais, mesmo porque, sem eles, desapareceria o suporte das uniões e dos tratados internacionais, visto que há uma correlação essencial entre o que se estabelece no plano transnacional e o que deve ser realizado em cada país.

Por outro lado, não são apenas questões econômicas e financeiras que estão em jogo no processo de globalização, como o demonstram todas as medidas reclamadas para salvaguarda do alto valor do meio ambiente, a começar do ar e das águas, problema que não pode ser confiado exclusivamente a órgãos de caráter internacional, como pregam alguns ecologistas fanáticos que querem fazer abstração dos patrimônios nacionais.

Na mesma linha de pensamento se põem os problemas culturais, não havendo maior risco do que o estabelecimento de um quadro unitário de valores imposto pelas nações mais poderosas, com desprezo do espírito nacional que dá vida e significado às suas produções, desde as religiosas às científicas, das jurídicas às estéticas.

Por mais que se admita o primado universal de certos valores éticos e intelectuais que constituem o que costumo denominar invariantes axiológicas, não há como esquecer o que caracteriza cada cultura nacional, objeto de espontânea criação por parte de suas elites e do povo em geral.

Ora, o valor próprio de cada cultura nacional corresponde à língua falada por sua gente, não obstante o crescente predomínio do inglês como meio universal de comunicação. Isto posto, cabe a cada Estado promover a defesa de seu patrimônio lingüístico, sobretudo nos países, como o Brasil, em que os valores intelectuais próprios são representados pela literatura, mais do que pela filosofia e pelas ciências positivas.

Há muito tempo o Brasil deixou de ser o "reino dos bacharéis" para se tornar, de um lado, o país dos economistas e empresários, e, do outro, dos homens de letra, historiadores e sociólogos, para os quais a língua portuguesa continua sendo a "última flor do Lácio, inculta e bela".

Em ambos os setores é preciso contar com os poderes do Estado nacional, não para impor planos econômicos ou lingüísticos, mas para dar todo o apoio às instituições e academias que visam a preservar o português como raiz e fonte da cultura brasileira, e, ao mesmo tempo, reprimir "o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros", como é expressamente determinado pelo parágrafo 4º do artigo 173 da Constituição de 1988.

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