OESP
Todo ano é o mesmo problema: minha coluna sai na terça-feira de carnaval e o único assunto, claro, é o próprio. E sou obrigado a me repetir, pois não tem sentido falar do Lula no carnaval, apesar de ele estar fazendo uma folia nos 365 dias do ano, fantasiado de messias populista, usando chapéu de cangaceiro, de corintiano, de Baco na festa da uva, dançando xaxado, usando agora um blusão “goiabeiro” com um escudo da República, com faixa e tudo. Não dá para falar desse homem, porque é falta de tato, escrever no carnaval para um leitor de ressaca, vestido ainda de bailarina, barbado e sujo, tomando Engov com sal de fruta. Nem dá para falar dos outros ventos que rolam no noticiário, como a gripe aviária, esta vingança das galinhas , nem do espantoso estrago que o Bush fez na humanidade, destruindo em quatro anos o nome da América, unindo o Oriente contra nós e criando exércitos de homens-bomba que agora vão iniciar a guerra civil no Iraque. Este ano eu tentarei não enlouquecer com a insânia do mundo, porque andei muito messiânico. Se bobear, acabo fazendo discursos na rua, como um profeta de camisola, com multidões rindo e me jogando cascas de tangerina. Por isso, só me resta ficar no carnaval mesmo.
Antigamente, os jornais chamavam o carnaval de “tríduo momesco”. Não é genial? “Tríduo momesco”, três dias de folia, delírios de Momo. E o tríduo momesco começava bem antes do carnaval. Começava como uma frente quente no ar, com sons de marchinhas que surgiam no rádio, com os flamboyants sangrando no verão do Rio, com as cigarras cantando (onde estão as cigarras do Rio nos fins de tarde?) naqueles verões que prometiam amores infinitos. O carnaval começava como o prenúncio de uma tempestade feliz, o carnaval para mim não era nem orgiástico nem sexy; era a esperança de realizar alguma façanha, alguma aventura que nunca ousara, que ia mudar a minha vida de tímido e bobo, algo de milagroso, uma paixão realizada, um rosto infinitamente belo que eu beijaria entre confetes dourados e serpentinas sensuais, um extraordinário feito sexual na madrugada ou até mesmo um dramático desencontro, como no famoso conto de João do Rio, O Bebê de Tarlatana.
Para mim, o carnaval sempre teve um ar etéreo, impalpável, sempre foi uma ventania de sons, uma debandada de perfumes, uma alegria febril que só os outros tinham e que eu nunca entendia direito, deslocado, pensando: “Por que estão tão felizes?”
Eu gostava mesmo era de sair na rua do subúrbio para ver os blocos de sujos, como chamavam. Havia perto de casa, no Rocha, um sujeito que saía com uma casaca velha, numa bicicleta cambaia, triste, em silêncio, com um cartaz: “Bloco do Eu sozinho” – tinha algo de metafisico. Tinha o “Amélia”, um mendigo bicha que se vestia de mulher sobre seus trapos e cantava Chiquita Bacana. Vendo os “clóvis” de Santa Cruz, os malucos de saia, bigode e tamancos, eu ficava feliz (oh... infância neurótica...); o resto, as odaliscas jovens, as tirolesas e piratas me intimidavam.
Muitos anos mais tarde, entendi a razão profunda dos blocos de sujos quando vi um genial filme de Jean Rouch, o antropólogo-cineasta francês, um filme chamado Les Maîtres Fous. Nele, os desgraçados da África do Sul, os “underdogs” negros do “apartheid” iam de noite para a floresta fazer um ritual meio vodu de exorcismo dos dominadores brancos. Uma camisola suja vestia um negro enorme, representando a “mulher do governador”, os passos de ganso dos guardas do palácio viravam uma dança caricatural pelos negros esmagados de solidão, um grande ovo de avestruz era espatifado na cabeça de um outro negrão, como o chapéu coroado de amarelo dos generais brancos. Esta representação escrachada da vida social, esta crítica travestida nos oprimidos, esta mímica de si mesmos esculhambados em seu dia-a-dia, isso fica muito além do narcisismo que tomou conta de tudo no carnaval de hoje.
Esta gente não se espreme no gueto programado dos sambódromos.
Nas ruas remotas, está a origem preciosa do carnaval profundo, a festa maluca que o povo dá a si mesmo. Lá estão os desesperados, os famintos de comida e de amor, lá estão os excluídos da festa oficial. Nas ruas, estão os anjos de cara suja, os blocos das escrotas, os blocos dos vagabundos, dos bêbados ornamentais, da crioulada dura. Esses molambos e pirados jogam sobre nós a beleza da lama, detêm o enredo de séculos de exclusão;. na verdade, o samba-enredo mais antigo da humanidade: “Tragédia milenar dos desgraçados”. Ali está a muda revolta não entendida do trabalho desumano, da escravidão dos baixíssimos salários, o prazer de escrachar-se e escrachar a beleza óbvia da elegância e do brilho. Nesta inversão da beleza limpa, há a invasão de uma poesia “grotesca”, que atravessa os séculos, desde Brueghel, Bosch, Rabelais até Goya e Ensor e acaba nas caretas coloridas das máscaras da Casa Turuna. Nas ruas sujas estão as raças brasileiras ensopadas, num casamento grupal doído, dando à luz um bebê mestiço gargalhante, que nos lembra que, sob o brilho das massas de mercado, sobra uma santidade essencial misteriosa.