O mito do Plano Cruzado
Mailson da Nóbrega *
O Plano Cruzado faz 20 anos nesta terça-feira, mas continua vivo o mito de que poderia ter sido salvo do insucesso. É o que se vê da pergunta ao ex-presidente Sarney na entrevista ao Valor (3/2/2006).
"Por que a reunião de Carajás (em maio de 1986), destinada a corrigir os rumos do Cruzado, foi um fracasso?"
Diz a lenda que os problemas do plano desapareceriam se o ajuste fiscal proposto pela equipe econômica tivesse sido aprovado. Na verdade, pouco se poderia fazer, mesmo com a aquiescência de Sarney (que nega a recusa na entrevista). O Cruzado não tinha como dar certo.
O Plano Cruzado foi importante pelas lições que deixou, uma delas a de revelar o cansaço com a inflação. Ao contrário do que se pensava, a correção monetária (CM) não era uma fórmula mágica para conviver com a alta dos preços.
A CM aprofundou a cultura de tolerância à inflação, que havia sido impulsionada pela idéia equivocada de que ela derivava de um conflito na distribuição de renda. Assim, combatê-la eficazmente dependeria da solução desse conflito, o que exigiria pactos de preços e salários. Até hoje tem gente que acredita nessa ingenuidade.
O custo da CM foi elevado. Inicialmente aplicada ao Sistema Financeiro da Habitação, aos títulos do Tesouro e aos tributos, foi estendida sucessivamente aos salários, aos contratos e às demais transações.
Surgiu a inércia inflacionária, pela qual a inflação de "hoje" determinava a de "amanhã" e assim por diante.
A inércia criou a ilusão de que bastava eliminá-la, como se pressões fiscais e monetárias, causas básicas da inflação, não existissem no Brasil. O congelamento de preços e salários parecia ser a saída. Outra idéia , que à época se considerava arriscada, era indexar todos os preços à ORTN e depois congelá-la (mais tarde aplicada ao Plano Real, com a URV).
O congelamento, a opção escolhida, viria a revelar outro fenômeno então difícil de perceber. A queda súbita da inflação interrompia a corrosão dos salários reais e ampliava a disposição dos bancos de ofertar crédito aos consumidores. O consumo explodia, em particular nas camadas menos favorecidas, que sofriam mais com a inflação. Além disso, os autores do plano criaram um abono salarial de 8%, o qual pôs mais fogo na fogueira.
O aumento do consumo ocorreu sob uma economia fechada. Era proibido importar bens de consumo. A abertura começaria somente em 1988 e viria a se ampliar a partir de 1990. Assim, era impossível aumentar a oferta tão rapidamente quanto subia a demanda. Resultado: prateleiras vazias e tentativas heróicas de buscar boi nos pastos. O plano estava fadado a morrer.
O Cruzado somente poderia ser salvo se a oferta aumentasse e/ou a demanda diminuísse de maneira dramática. A primeira era impossível em uma economia fechada. A segunda não passava de uma miragem, pois exigiria uma contração cavalar dos gastos do governo (que então representava pouco mais de 20% da demanda global). Mesmo que a rigidez orçamentária não fosse tão grave quanto hoje (o desastre da Constituição ainda não havia ocorrido), é evidente que esse ajuste era politicamente inviável.
A idéia de que o Cruzado poderia ter sido salvo padece de dois defeitos: (1) o de pensar que existiria campo institucional para um mega-ajuste fiscal; (2) o de que Sarney teria poder político para impor ônus dessa magnitude ao setor público e à economia. Os economistas haviam dito a ele que o plano combateria a inflação sem sacrifícios.
Como imaginar que o presidente toparia fazer o contrário em meio às desilusões com o já então claro fracasso da iniciativa? Como disse Sarney na entrevista, ele não possuía esse poder. "Fiquei no cargo, mas o poder ficou na mão do Ulysses". Uma tal ação ortodoxa naquela época era inviável. "Eu não tinha condições políticas para isso. Eu ia ser deposto", disse o ex-presidente. "E isso era trágico para o Brasil, num momento em que nós estávamos numa transição democrática."
Além das lições citadas, o Cruzado e seus sucessores ensinaram como lidar com mudanças de moeda e dos contratos, o que foi fundamental para formular o Plano Real. O êxito deste deveu também ao fato de a economia estar aberta, o que permitiu suprir, com importações, o excesso de demanda derivado da queda da inflação. As importações de 1995 foram o triplo das de 1993.
Já era hora de enterrar o mito de Carajás.
* Mailson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda, é sócio da Tendências Consultorias Integradas (e-mail: mnobrega@tendencias.com.br)