OESP
Ascensão do gigante asiático à condição de potência abre debate sobre seu papel na comunidade internacional
Marie-Laure Germon
Aléxis Lacroix
LE FIGARO
A ascensão do regime de Pequim à condição de grande ator no cenário internacional provoca uma série de interrogações e, às vezes, inquietações, agora que a sociedade civil chinesa expressa uma aspiração à liberdade. O ex-ministro socialista francês de Relações Exteriores, Hubert Védrine, debate com o ensaísta liberal Guy Sorman que, ao fim de uma viagem de um ano pela China, publicou L'Année du Coq, Chinois et Rebelles (O ano do Galo, Chineses e Rebeldes) (Ed. Fayard, 320 p.)
O sr. assina 'L'Année du Coq', um ensaio no qual revela uma China pouco conhecida no Ocidente. No seu entender, essa é a "verdadeira" China?
Guy Sorman - Outrora, eu viajava à China com Alain Peyrefitte, e nós não víamos a mesma China. Ele me dizia, grosso modo: "Eu me ocupo da China oficial e você da de baixo." Segui esse conselho, passando o ano de 2005 na China de baixo, aquela das províncias e das aldeias. Será essa a verdadeira China? Em todo caso, é a menos conhecida na Europa. O que me chocou nessa "China de baixo", mais que a extrema pobreza, é a miséria filosófica. Na China rural - cerca de 80% do país - , os camponeses não têm nenhum direito: nada de propriedade privada, nada de liberdade de expressão. Eles são oprimidos pelos chefetes do Partido Comunista, muitas vezes violentos e corruptos. Escapar dessa miséria é quase impossível: as antigas redes de solidariedade, a família, os templos foram aniquilados pelas revoluções e se reconstroem com dificuldade. Para as crianças, o futuro é desesperador: as escolas são miseráveis e custam caro aos pais. Resta o êxodo: duzentos milhões de chineses vagam de um canteiro de obras para outro. O desemprego atinge 20% da população, as doenças estão por toda parte - aids, malária, tuberculose... A prostituição em massa também. E não há rede de saúde pública: a saúde é sempre paga.
Em 'L'Année du Coq', o sr. escreve: "A ideologia dominante do enriquecimento pessoal não favorece a compaixão." Esse é um dos reversos da modernização da China?
Sorman - Freqüentemente se atribui à cultura clássica a relativa falta de compaixão que se pode observar na China contemporânea. Parece-me que é antes a ideologia do regime - o enriquecimento pessoal a qualquer preço - que destruiu a força compassiva da China pré-comunista.
Hubert Védrine - 'LAnnée du Coq' de Guy Sorman é uma investigação sem complacência, às vezes cruel, à semelhança dos livros de Zola, Dickens ou Steinbeck. Não existem apenas as cidades novas como Pudong; há uma outra China também, e ela é até majoritária, eu não vejo como se poderia contestar. Coexistem diversas Chinas. Mas em que sentido isso caminha? Não se pode dizer. É difícil afirmar que, para os chineses de hoje, a situação se agravou. Mesmo sem recuar muito no tempo, não esqueçamos as provações terríveis que os chineses enfrentaram no século 20 - a guerra, a ocupação japonesa e suas atrocidades, a guerra civil, o maoísmo, o fiasco catastrófico do Grande Salto Para Frente, as exigências da Revolução Cultural e seus milhões de mortos. E eles se lembram disso.
Sorman - Sim, Hubert Védrine. A situação da China é globalmente melhor que nos períodos trágicos que você enumera; é por isso que as reivindicações populares estão aumentando. Várias rebeliões atuais se explicam pela impaciência: as pessoas desejam entrar mais depressa na modernidade, e se decepcionam com o avanço muito lento; o povo também está revoltado com o enriquecimento dos poderosos.
Védrine - Apesar de tudo, gostaria de expressar um otimismo moderado. Continuo achando que, apesar das forças de obstrução autoritária que você observou na China, a dinâmica do movimento acabará se impondo e modificará a situação que você descreveu.
Sorman - Talvez, mas durante o ano do galo, o governo chinês reforçou o aparelho de propaganda, censurou meios de comunicação, proibiu ONGs e prendeu muitos jornalistas e religiosos. Muitos manifestantes nas aldeias foram mortos pela polícia; começamos a saber dessas coisas pela internet. O que caracteriza o regime atual é a contradição permanente entre um discurso moral no topo, pseudoconfucionista, que ataca os ocidentais, e a brutalidade que o povo comum sofre no cotidiano.
Justamente. Um dos cenários possíveis para o futuro da China não será uma aliança entre um "hipercapitalismo" e um Estado autoritário?
Sorman - Hubert Védrine parece acreditar num triunfo final da dinâmica liberal... De minha parte, não aposto nessa transição automática da prosperidade para a democracia: o capitalismo de Estado atual - antiliberal, porque sem propriedade privada - foi inventado para fortalecer o partido, e não para dissolvê-lo. É verdade também - falo muito disso em L'Année du Coq -, que uma cultura popular se desenvolve, independentemente do partido; pela música e a televisão, os jovens chineses se aproximam dos costumes ocidentais. Acredito que a mudança passará por onde não se espera. Enquanto a sociedade se abre, explora a internet e experimenta aí contornar a censura, o partido resiste e, com a cumplicidade de empresas como o Google (site de busca da internet que cedeu à censura do governo chinês), exclui as palavras "Taiwan" e "democracia" dos mecanismos de busca.
Essa censura será a prova de que o regime chinês sabe se esquivar dos novos meios de comunicação?
Sorman - O Partido Comunista Chinês teme imensamente a liberdade de informação e a liberdade de consciência: ele não tolera nenhuma crítica, incluindo a internet. Nas universidades não há debate. Aos devotos que esquecem a natureza deste regime, recordo que a polícia prende sem julgamento pessoas consideradas "desviantes", em particular budistas, taoístas e pastores protestantes. Portanto, não é a China que me inquieta, mas o partido: suas intenções são impenetráveis e imprevisíveis. Nós ficamos restritos a vislumbrar indícios minúsculos como no tempo de Mao Tsé-tung, com a esperança de que os reformistas do partido se apoderarão dele...
Neste momento, na Europa, crescem as preocupações com sucessos alcançados pela China na conquista de novos mercados. O tema do "perigo amarelo" estará de volta ante uma China que se torna um ator importante na globalização?
Védrine - É preciso lembrar em que contexto ocorre essa emergência da China. Depois da queda do Muro de Berlim e do desmoronamento da União Soviética, o Ocidente acreditou no seu triunfo e no "fim da História". Os povos do planeta iam se alinhar sobre nossa "democracia de mercado". Ao mesmo tempo, os europeus esperavam viver enfim num mundo "pós-trágico" - um mundo onde a Carta da ONU seria respeitada e onde os Estados recuariam em favor da justiça e da sociedade civil internacionais. Durante uma década de otimismo, os mesmos acreditaram iminentes a concretização da paz no Oriente Médio, o advento de um Tribunal Penal Internacional ou de uma Europa poderosa. Essas promessas grandiosas não se cumpriram e as ilusões dos anos 90 não saíram incólumes dos anos 2000-2005: mesmo a ONU, em Durban, não conseguiu chegar a um acordo numa questão tão simples quanto a definição de racismo. A comunidade internacional continua sendo um belo objetivo. Na falta de uma ameaça unificadora, o laço transatlântico afrouxou: os Estados Unidos contemporâneos não são mais compreendidos por europeus obstinados contra o recurso à força. E eis que o terrorismo se incrusta, que surgem a China, a Índia, o restante da Ásia, que a Rússia joga com seu petróleo e seu gás. Tudo isso não tem nada a ver com a "globalização feliz". A questão chinesa só adquire mais amplitude. Por enquanto, não retornamos ao "perigo amarelo".
Sorman - Nossa cultura econômica deixa tanto a desejar que os franceses não percebem todos os avanços que a China lhes oferece. Nós interiorizamos até que ponto as exportações chinesas na França dopam nossa economia. Mas não estamos suficientemente conscientes de que, graças às fábricas chinesas, podemos também comprar pela metade do preço os tênis para nossos filhos. Com o risco de me repetir, meu temor fundamental incide sobre a China como potência político-militar, não como potência econômica.
Fala-se muito no surgimento de um mundo multipolar. No seu entender, a China será um de seus motores?
Védrine - O mundo multipolar surgiu, de fato, aos trancos, mas às vezes parece que à nossa revelia! Várias relações bipolares se estabelecem e escapam ao controle de uma Europa que se tornou contornável: entre China e a América Latina, entre África e China, América Latina e África, Rússia e China, Índia e Estados Unidos, Rússia e Irã, Irã e China, etc. Isso não é completamente favorável a uma "comunidade internacional", embora não seja novidade. E o que me inquieta, diferentemente de Guy Sorman, é não ter certeza sobre a eficácia dos mecanismos, exceto, em parte, no interior da Organização Mundial do Comércio (OMC), que permitiriam a uma verdadeira comunidade internacional multilateral integrar essas novas potências emergentes, sem tensões graves. Várias civilizações no mundo continuam coexistindo com suas mentalidades diferentes. Alguns dirigentes chineses evocam, para atenuar a inquietação internacional, uma "emergência pacífica da China". Se o mundo não está necessariamente preparado para fazer frente a esse turbilhão chinês, não é menos verdade que, contrariamente ao Ocidente, que sempre assumiu como um dever "evangelizar todas as nações", a China jamais manifestou uma propensão particular ao proselitismo. Esse ponto é encorajador.
Sorman - O imperialismo cultural do Ocidente, outrora em nome de Cristo, hoje em nome da democracia, é também o sinal de um interesse pelo outro. É verdade que, exceto na revolução maoísta, a China não propõe um modelo universal para os não chineses; mas não será porque o resto do mundo é ignorado, desprezado até? Apesar dessa não-ingerência - simpática - da China em nossos assuntos, por que a China deveria nos inquietar mesmo assim, mais que a Índia, por exemplo? Porque a China, não sendo uma democracia, é, por definição, imprevisível.
Como os ocidentais devem se comportar com essa China que os inquieta?
Sorman - Abstendo-se de um excesso de reverência para com o Partido Comunista; o partido não é a China, ele é apenas o seu ditador momentâneo. Como as 26 dinastias imperiais que o precederam, esse regime desaparecerá. É em nome dessa distinção entre o povo e os déspotas do momento que, em L'Année du Coq, eu caracterizo a vontade francesa de vender armas a Pequim. Tenhamos um pouco de memória e um mínimo de moral! O massacre da Praça da Paz Celestial - que esteve na origem do embargo sobre as armas não é, para o povo chinês, uma página virada: 17 anos depois, ainda não se conhecem os nomes das vítimas, os pais não puderam realizar os funerais. Faço uma sugestão: antes de levantar o embargo e enviar nossos atletas aos Jogos Olímpicos de Pequim, a França se honraria ajudando a sra. Ding Zelin, presidente da associação das mães das vítimas da Praça da Paz Celestial, a preparar a lista. O PC a proíbe: de que lado está a França nessa negação da memória?
Védrine - Se tivéssemos de lidar com uma China determinada a converter o mundo aos seus próprios valores universais, como são as sociedades ocidentais ou islâmicas, haveria do que se inquietar seriamente no futuro. Mas a ambição chinesa tem o ar mais clássico, a do regime, como a dos chineses, para retomar a distinção de Sorman. Mas em seu livro, Guy Sorman, você pede uma política ocidental mais dura e mais condicional em relação a Pequim. Você sugere inclusive sanções e medidas de pressão no momento mesmo em que o mercado chinês fascina e atrai mais do que nunca! Seria legítimo? Seria eficaz? Em sua fase atual de arrogância , os ocidentais se esquecem com muita freqüência que eles representam apenas um sétimo da população mundial. E será realista? Não se vê um acordo entre os Estados Unidos e a União Européia sobre essa base. É preciso ser prudente, é claro, zelar por nossos interesses estratégicos e econômicos, ter com a China uma linguagem clara. Mas pode-se também apostar na metamorfose da China, numa dinâmica interna que já está mudando a sociedade e suas aspirações e deverá acabar fazendo evoluir o próprio regime, e os encorajar a mudar.
Tradução de Celso M. Paciornik