Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 26, 2006

DANIEL PIZA: Popices

OESP
Popices

Daniel Piza
E-mail: dpiza@estado.com.br Site: www.danielpiza.com.br

Um amigo acha que o pop começou na primeira vez em que Frank Sinatra, por exemplo, fez uma pausa para respirar e as moças da platéia suspiraram. Seus olhos azuis e sua voz única faziam que filas dobrassem quarteirões e jovens de ambos os sexos tivessem ataques histéricos. Mas ainda no século 19 as prima-donas inspiravam paixões no público, como as sopranos a quem Machado de Assis dedicava poemas românticos. Acho mais provável que o pop tenha começado quando Elvis "the Pelvis" Presley fez a primeira aparição no programa de TV de Ed Sullivan e, mesmo sendo filmado apenas da cintura para cima, seu rebolado provocou furor nas fãs e fúria nos pais. Faz exatos 50 anos. O rock, mistura de batida e balada, e a TV, com suas imagens internacionais em tempo real, são dois ingredientes fundamentais do que se chama pop. Não por acaso, nesta semana só se fala em dois shows, o dos Rolling Stones em Copacabana e o do U2 no Morumbi, transmitidos ao vivo pela Globo.

As prima-donas se vestiam como prima-donas deveriam se vestir. Sinatra se vestia como todo mundo. Ninguém se veste como Elvis, David Bowie, Mick Jagger. E quase todos querem ser Elvis, Bowie, Jagger. Muitos talvez quisessem ser Sinatra para namorar Ava Gardner ou Grace Kelly. Mas quase todos querem ser famosos como Bono, incondicionalmente adorados como Bono. Muito mais espaço foi dedicado à barriga enxuta de Jagger do que à pele-pergaminho de seu rosto. Ele é um coroa, mas é sexy, cheio de energia, e uma faixa dizia: "Faça um filho em mim." Bono, cujos óculos são copiados em toda parte, pinçou meninas ao palco para trocas de cafunés e olhares. Ali em cima, pode parecer humano.

Michael Jackson e Madonna foram os dois maiores ícones do pop anos 80, quando a rebeldia do rock passou a fazer parte da mesma estratégia de consumo. Contra os ídolos autodestrutivos da contracultura, adotaram a linha mutante. A cada disco assumiram uma personalidade diferente. A tal ponto que, na sucessão de máscaras, perderam a identidade. Jackson perdeu até o rosto. Tudo que havia de autêntico e talentoso até Beat It foi desaparecendo como a melanina de sua pele e o osso de seu nariz. Madonna ainda soube se reinventar. Mas as baladas suburbanas deram lugar para uma música que só serve como pano de fundo rítmico para sua dança-ginástica, Jane Fonda da era "clubber". David Bowie, a mais perfeita tradução do pop, também é camaleão: podia ser robô ou dançarino, andrógino ou sedutor; podia ser o mais frio e o mais quente dos astros. Mas sabe que seu tempo passou, ainda que continue fazendo boas músicas, como Lou Reed ou Bob Dylan. Dylan é muito inteligente para fingir que ainda é jovem.

Muitos desses ídolos não seriam reparados dentro de um ônibus. Se Bono fosse um balconista de bar em Dublin, não haveria filas para tomar de sua Guinness. A fama faz lindos os que não são mais que charmosos. Me lembro de uma tira de quadrinhos de Angeli em que o personagem Walter Ego acorda, se olha no espelho e se acha feio. "Feio como quem?", pergunta. "Feio... como o Mick Jagger!" Até para ser feio é preciso ser especialmente feio.

A TV, no entanto, não consegue transmitir bem os grandes shows. Rolling Stones e U2 são muito bons de palco. Apesar da bagunça e do mau cheiro, o espetáculo de Copacabana ficou na história. O U2 não é tão importante para a história do pop quanto Rolling Stones, mas faz um som tremendo ao vivo, como se comprovou no Morumbi. The Edge é um guitarrista extraordinário, e não é verdade que o sucesso da banda venha da atuação politicamente correta - ingênua, para dizer a verdade - de seu líder, ainda que não se possa isolar do sucesso o "engajamento" de suas letras. Mas a simpatia diabólica de Mick, Keith e companhia não permite comparações. Os Beatles fizeram número maior de grandes canções, de grandes transas entre letra e música, principalmente em Sargent Pepper's. Os Rolling Stones fizeram coisas que eles não fizeram.

Pop é "POP!", explosão de pipoca ou chiclete, arte feita como produto assumidamente comercial, almejando grande escala. A pop art nasceu em Londres, mas é fruto da americanização do mundo, da invasão de coisas de plástico, fast-food, refrigerante, comunicação instantânea. Mas Vivaldi pode ser usado como pop num comercial de sabonete. E nem sempre o pop vira popular. Atualmente, por sinal, essas duas coisas andam longe. Radiohead é pop, brilhantemente pop, mas não é popular, não é um nome que qualquer um no boteco reconhece.

Uma carreira pop pode se sustentar em meia dúzia de hits. A maioria das bandas de sucesso não fez nem isso. Raras transcendem a condição de modismo, raríssimas a de moda. Instantâneo como é, o pop logo se esquece. Mas em alguns casos o entretenimento de ontem se torna a cultura de hoje. Os Rolling Stones vivem basicamente dos hits dos anos 60, o U2 dos hits dos anos 80. Mas são mais que traduções de uma época e passam de geração em geração, como os Beatles passariam se estivessem todos vivos - tanto que, sozinho, Paul McCartney continua a aglutinar multidões. A morte precoce dá uma aura imbatível a alguns ídolos pop, como James Dean, John Lennon ou, em ponto menor, Kurt Cobain. Mesmo assim, o que sustenta a durabilidade de uma fama é a qualidade do que se fez, o que se trouxe de novo e certeiro.

Já li muitos analistas comparando esses espetáculos ou "megashows" com manifestações nazistas, de obediência coletiva. Bobagem. Assim como os do futebol, esses espetáculos trazem uma sensação de coletividade - afinal, está todo mundo lá admirando ou ao menos comentando a mesma coisa - que é fato raro na vida moderna. Ao mesmo tempo, o pop-rock também nos lembra do que há de primitivo em nós, de que não somos apenas bonecos sociais, obrigados a nos comportar como se não tivéssemos instintos e desejos. O problema maior é que ele mesmo se torna exemplo disso que normalmente critica. A idolatria é uma doença juvenil que atinge todas as idades e - como os críticos que levam o pop a sério demais e exaltam uma banda nova por mês, sem notar a contradição - impede que a pessoa tenha discernimento sobre o que motiva seu gosto. Conheço mais pessoas que gostam de Beethoven e Shakespeare (ou de Cole Porter e Fernando Pessoa) e sabem curtir um Tim Maia ou Jorge Ben - os reis do pop brasileiro - do que o contrário. Rock escraviza o indivíduo, não a massa, embora Jagger e Bono tenham sido tratados como messias em passagem por aqui.

Ah, o carnaval também virou pop, fenômeno televisual. Mas os desfiles das escolas de samba parecem mil vezes mais marciais e reprimidos do que os shows dos Stones e U2. É a burocracia da folia.

ERRATA

Felizmente meu livro Machado de Assis - Um Gênio Brasileiro (Imprensa Oficial) chegou à segunda edição. Nela foram corrigidos alguns lapsos lamentáveis que cometi entre as 400 páginas. Defini mal, por exemplo, o entrudo, o carnaval de origem portuguesa, que não era apenas em salões, mas também em ruas; escrevi que José Bonifácio, tema de ensaio meu em Questão de Gosto, era português (embora Portugal o tenha querido para si); e em duas vezes deixei escapar João Dias, em vez de José (como aparece nas outras), o personagem de Dom Casmurro. Agora, tomar esses erros - que não são de ignorância nem de má-fé, mas de desatenção - como argumento para desqualificar o livro todo, sem mencionar a contextualização histórica e as interpretações inéditas, é exemplo cabal da "inteligência brasileira", do despeito academicista contra quem poupa os leitores de notas de rodapé e aridez verbal. Quanto ao jornalismo casca-grossa da seção "cultural" da Veja, qual a novidade?

RODAPÉ

Thomas Bernhard é um escritor de verdade, como sabe quem leu Extinção ou O Sobrinho de Wittgenstein, para não citar os que creio que ainda não foram traduzidos como Old Masters e Lime Works. Em Origem (Companhia das Letras, tradução de Sérgio Tellaroli) estão reunidos seus cinco relatos autobiográficos, organizados de forma cronológica. Bernhard é um crítico ácido do nacionalismo e da religião e da maneira como se educam os filhos para adorar personalidades - como "Hitler, Jesus ou seja lá quem for"... Apesar de tanta acidez, lança pontes de contato afetivo inestimáveis. Gostei muito de saber que ele passou a infância fazendo desenhos e lendo atlas, como eu. E que "existem aqueles que deixam os outros em paz e aqueles que perturbam e irritam, categoria à qual pertenço".

POR QUE NÃO ME UFANO

Lula disse que um político faz campanha 365 dias por ano. Ou seja, confessou que está em campanha pela reeleição desde 1º de janeiro de 2003. E que, portanto, não governa.

Aforismos sem juízo
Analisar não é adivinhar. Resenhar não é revisar.

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