Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Míriam Leitão - A dívida acabou



Panorama Econômico
O Globo
24/2/2006

“Estamos virando uma página, a página dos anos 80”, disse ontem o secretário do Tesouro, Joaquim Levy. Foram mais ou menos essas também as palavras de Pedro Malan numa conversa ontem à tarde. A página que está sendo virada consumiu três anos da vida de Malan na penosa negociação com 800 credores. É uma longa história a que terminará agora com a recompra dos bradies. Ela traz lições para o Brasil.

A primeira lição é não fazer o que foi feito nos anos 70: o Brasil se endividou de forma descontrolada na época da abundância de dólares, providenciada pela súbita riqueza dos árabes depositada nos bancos americanos e europeus. A inflação subiu nos Estados Unidos no fim da década e chegou a 12%. Paul Volcker, o presidente do Fed na época, adotou juros à sua imagem e semelhança: ele tem 2,04 metros de altura; os juros foram para 21%. Os empréstimos tinham juros flutuantes: os custos subiram instantaneamente. Com o choque dos juros, o mundo entrou em recessão. Os países endividados quebraram um após o outro. O México, em agosto de 82. O Brasil foi o quebrado de setembro.

Era o governo militar e a oposição, o PMDB, bem que avisara do risco do endividamento. Passou a dizer que a dívida era impagável. E parecia mesmo. O governo militar foi enrolando, assinando uma carta de intenção atrás de outra. Não cumpria nenhuma e aumentava a desmoralização do Brasil, tido como país caloteiro.

O governo civil chegou em 85 ameaçando fazer a auditoria da dívida e não pagá-la “com o sangue dos brasileiros”. A dívida era um item apaixonado do discurso político. Foi restabelecido um pequeno fluxo com o exterior mas, em 87, após a farra do Cruzado, o Brasil ficou sem reservas e decretou a segunda moratória; no governo Sarney. Ele tentou apresentá-la como coragem cívica, mas era falta de dólares mesmo. O Brasil ficou sem crédito, sem reputação. Alijado.

Em 1988, o então ministro Bresser Pereira foi a Washington com uma idéia: a dívida era tão grande que, como estava, era impagável. Solução: os credores tinham que aceitar uma redução do valor de face da dívida. Foi enxotado pelo secretário do Tesouro. Era um “non starter”, disse o então secretário, James Baker. Ou seja, não dava nem para começar a conversa. Bresser estava certo e Baker errado. Tanto que, logo depois, por iniciativa do outro secretário do Tesouro, Nicholas Brady, foi criado o formato de negociação em que os credores dariam um desconto. Foi desse formato que nasceram os bradies que agora serão recolhidos e pagos. Antes deles, o que havia de papel brasileiro no mercado trazia no seu próprio nome o pecado original: IDU, “juros devidos e não pagos”. O papel, prova do calote, era emitido pela República do Brasil.

No anos 90, começou a negociação para transformar os papagaios antigos em papéis que viriam com desconto e que seriam a nova dívida, começo de uma nova confiança no Brasil. A negociação começou em agosto de 91.

De um lado da mesa, estava o economista Pedro Malan, nomeado pelo ministro Marcilio Marques, o negociador. Do outro lado, um comitê de 21 bancos que representavam 800 bancos a quem o Brasil devia e não pagava. Malan foi acompanhado durante todo o processo por advogados, procuradores, economistas, funcionários do Banco Central, numa trabalheira que parecia interminável para nós jornalistas.

Entre Malan e os banqueiros, o primeiro impasse. Eles exigiam que antes houvesse um acordo com o FMI. Só que o Fundo não queria nem ouvir falar do Brasil. País caloteiro, não cumpridor de cartas de intenção e ainda com uma inflação incompreensível de 2.500% naquele ano de 92. As negociações empacavam sempre nesta exigência.

— Foi com muita insistência que conseguimos convencê-los a aceitar uma outra fórmula: a de que, se bancos representando dois terços da dívida aceitassem o acordo, ele seria fechado — conta Malan.

Com paciência chinesa, o Brasil foi negociando a arquitetura de cada tipo de papel que tomaria lugar da velha dívida não paga: um era bônus ao par, o Brasil pagaria 100% em 30 anos, mas com juros fixos e bem baixos; o outro era o Discount, que tinha um desconto de 30%. Eram seis ao todo. Os banqueiros exigiram que o Brasil desse, como garantia, títulos do Tesouro americano. Caso não pagasse de novo, eles tomariam os títulos.

Aí foi um novo impasse. Os Estados Unidos tinham emitido papéis para todos os países que renegociaram a dívida, mas se negavam a fazer isso para o Brasil. O subsecretário do Tesouro, Larry Summers, estava irredutível. (Este, aliás, é o mesmo Summers que foi demitido de Harvard esta semana por seus maus modos.)

O que fez o Brasil? Sorrateiramente, sem que ninguém percebesse, começou a comprar papéis americanos no mercado. Foram meses comprando em segredo. Quando a negociação acabou e os credores perguntaram pelas garantias, o Brasil tirou o trunfo da manga. A renegociação acabou em novembro de 93 e o Senado a aprovou em abril de 94. Os bradies, marca de dois calotes e uma árdua negociação, alongaram a dívida até 2024.

Ontem, 23 de fevereiro de 2006, o secretário do Tesouro, Joaquim Levy, anunciou que vai recomprar os últimos US$ 6 bilhões e acabar com essa dívida, que um dia pareceu impagável. Há várias lições nesta longa história: uma é que calote nunca resolveu nada, cria problema para os governos futuros; a segunda é que um país constrói soluções quando, governo após governo, segue os mesmos objetivos.

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