Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Um choque entre religiões

VEJA

A rivalidade entre duas vertentes do Islã, acirrada por atentado em mesquita,
deixa o Iraque à beira da guerra civil

Ali Yussef/AFP
Hameed Rasheed/AP

Iraquiana com o rosto coberto pelo sangue dos dois filhos, policiais mortos em represália pelo atentado ao templo da cidade de Samarra




Uma interrogação paira sobre o Iraque desde antes da invasão americana, há três anos. A questão é se o país pode sobreviver sem uma mão forte (leia-se ditadores implacáveis como Saddam Hussein) que impeça os iraquianos de matarem uns aos outros. Na semana passada, a resposta parecia evidente: não. Depois do atentado que pôs abaixo um dos principais santuários xiitas, os iraquianos estavam à beira de ceder à tentação de uma guerra civil. O Iraque é uma costura malfeita de três grupos principais para os quais a identidade étnica e religiosa é mais importante que a nacionalidade iraquiana. A população majoritária é de muçulmanos xiitas (60% do total). Os curdos, que não são árabes, representam 15% e usufruem relativa autonomia na região em que são maioria, no norte. Os árabes sunitas, 20% da população, tinham o poder na ditadura de Saddam e não se conformam com a eleição que entregou o comando do governo às etnias rivais.

Desde a invasão americana, terroristas sunitas, muitos deles árabes vindos de países vizinhos, vêm provocando os xiitas com carros e homens-bomba. Com inesperada sabedoria, seus aiatolás têm recomendado paciência, visto que, pela primeira vez na história, graças às eleições democráticas impostas pelos americanos, eles estão conseguindo que a superioridade numérica se traduza em poder real. A provocação da semana passada, contudo, foi demais. Um grupo de homens vestidos com roupas das Forças Armadas iraquianas invadiu o santuário de Askariya (chamado de mesquita dourada devido à cúpula revestida de ouro), dominou seus vigias e o pôs abaixo com explosivos. Nas 24 horas seguintes, a represália das milícias e da turba xiitas incendiou dezenas de mesquitas e matou uma centena de clérigos e civis sunitas. Até o grão-aiatolá Ali Sistani, o cérebro por detrás da moderação xiita, advertiu que, se o governo não é capaz de garantir a segurança de sua gente, chegou a hora de fazer justiça com as próprias mãos. O grito de fúria foi ouvido igualmente no Irã (90% de xiitas), no Barein (70%) e até no Líbano, onde o Hezbollah, o grupo terrorista xiita, se declarou em pé de guerra. A mesma intolerância fanática que ainda na semana anterior se levantava contra o Ocidente devido às caricaturas do profeta Maomé virou-se agora para uma devastação fratricida.

A rixa entre as duas principais vertentes maometanas, tão distantes uma da outra quanto católicos e protestantes, joga um papel relevante nos problemas do Iraque. Nos países muçulmanos onde são minoria, os xiitas são tratados como cidadãos de segunda classe. No caos que se seguiu à ocupação americana, muitos jovens sunitas, sobretudo sauditas, viram no Iraque a oportunidade perfeita para massacrar xiitas, que consideram apóstatas. A Al Qaeda na Mesopotâmia, grupo terrorista liderado pelo jordaniano Abu Musab al-Zarqawi, declarou formalmente guerra aos muçulmanos xiitas. O atentado da semana passada se encaixa na estratégia desenvolvida pela insurreição sunita de provocar o caos, incitando os xiitas para a briga. A mesquita destruída abriga os túmulos de dois imãs do século IX, assassinados por um califa sunita. O último imã, uma criança, estava escondido em Askariya quando sumiu misteriosamente. Sua volta é fervorosamente aguardada pelos fiéis no dia do Juízo Final. Com rixas tão antigas, é um milagre que o Iraque ainda não tenha se decomposto.

Pragmáticos, os xiitas iraquianos vinham evitando as provocações sunitas nos últimos três anos, pois sabiam que chegariam ao poder pelo voto, como de fato aconteceu em dezembro passado. A Casa Branca tem pressionado os políticos xiitas a incluir os sunitas na formação do governo, com o argumento de que uma coalizão enfraqueceria a rixa entre os dois grupos. Apesar dos esforços de alguns líderes religiosos, entre eles os aiatolás do Irã, para virar o furor xiita contra os espantalhos de sempre (os Estados Unidos e Israel), está difícil serenar os ânimos. Por enquanto, o único elemento que retarda o estopim de uma guerra civil no Iraque é a presença das tropas americanas no país. "Em vez de uma guerra como a que ocorreu no Líbano entre 1975 e 1990, o cenário mais provável no Iraque é a multiplicação de massacres isolados entre as facções", disse a VEJA o cientista político americano Joseph Heim, especialista em Iraque da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos. "Seria algo semelhante ao conflito entre hindus e muçulmanos, após a partilha da Índia e a criação do Paquistão, em 1948, que deixou milhões de mortos", compara Heim. Ou seja, na melhor das hipóteses, um cenário de matanças.


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