O GLOBO
Todo ano a mesma dúvida hamletiana: ir ou não ir ao desfile das escolas de samba. Houve um tempo — afinal, sou freguês há cerca de quatro décadas — em que isso não se colocava. Valia qualquer sacrifício, inclusive o de passar doze horas em pé, às vezes sem poder fazer xixi. Hoje, com muito mais conforto, a disposição de ir não deveria comportar hesitações. Mas é que a idade faz a sua parte. De qualquer maneira, não pertenço à ala dos que acham que o carnaval “autêntico” morreu e que os desfiles deixaram de ser manifestações culturais para se transformar em shows para turistas.
Eles mudaram, é verdade, e nessa evolução muita coisa boa se perdeu. Não há mais, por exemplo, obras-primas como “Aquarela brasileira” ou “Bumbum paticumbum” (para só citar o meu Império), pois o samba virou marcha. Em compensação, nada se compara à riqueza e ao bom gosto das fantasias atuais, ao virtuosismo das baterias, à inventividade das alegorias e à grandiosidade dos carros.
Sou um folião passivo, um voyeur, mas não concordo com essa história de que carnaval bom foi aquele que passou. Nunca se brincou tanto nas ruas quanto agora. Cada bairro tem seu bloco ou sua banda. O Bola Preta e o Boitatá conseguiram até revitalizar o Centro do Rio nesses dias. Os “ensaios técnicos” estão atraindo um público quase tão grande quanto a apresentação oficial. Há quem os prefira por serem mais espontâneos. Outra alegação é de que as escolas se repetem e são parecidas. Fala-se em “mesmice”, esquecendo-se de que se pode dizer o mesmo das grandes óperas, que se repetem sempre e repetem a emoção que despertam. Vá dizer ao povão da arquibancada que Mangueira e Portela são a mesma coisa.
É só falar em decadência para surgir uma surpresa na bateria ou uma inovação nas alegorias. Agora mesmo pode estar sendo preparado um salto de qualidade. Visitei essa semana a monumental Cidade do Samba. Cesar Maia queria erigir um extravagante Museu Guggenheim e acabou construindo uma obra, essa sim, indispensável à cultura da cidade.
Ouvi de sambistas que ela é tão ou mais importante do que o Sambódromo. Maria Augusta, que sabe tudo de desfiles, acredita que o espaço influenciará inclusive na criatividade. Além de concentrar todas as etapas da produção carnavalesca, com um gigantesco barracão para cada uma das 14 escolas, a Cidade do Samba permitiu um ponto de vista inédito. Agora, os carros alegóricos de grandes dimensões (às vezes de dez metros de altura), que eram feitos por partes, são construídos por inteiro e podem ser vistos de cima, que é como se vê na avenida. “Nunca se pôde observar os carros desta perspectiva”, me disse a carnavalesca, do alto de um mezanino do barracão da Beija-Flor. “A mudança vai melhorar a qualidade estética dos carros.”
É, acho que vou ao desfile.