Se tivesse sido encomendado para retratar o panorama surrealista da sucessão presidencial, o noticiário político de ontem talvez não desse conta do recado tão cabalmente como ao apenas apresentar os fatos do momento. De um lado, o espetáculo de apoteose mental proporcionado por um presidente que se diz não-candidato, mas faz campanha e só pensa nisso em tempo integral, e que em qualquer país sério teria o tratamento que merecem os autores de crimes continuados contra a legislação eleitoral. De outro, a patética dificuldade do PSDB para se pôr de acordo até sobre a forma e o prazo de escolher entre os seus dois presidenciáveis aquele que presumivelmente teria estofo para tirar a reeleição de Lula. Não é à toa que se diz que os tucanos, como o personagem de Kafka que adormeceu pessoa e acordou inseto, se metamorfosearam em baratas tontas. Por fim, os resultados da mais recente sondagem eleitoral do DataFolha, que confirma a recuperação da popularidade de Lula registrada em pesquisas anteriores e ao mesmo tempo deixa em aberto as questões da amplitude e do significado da sua vantagem sobre o principal de seus adversários em potencial, o prefeito José Serra.
Dessas três dimensões do chamado processo sucessório, uma ofende, outra constrange, outra ainda há de deixar perplexos aqueles poucos eleitores que, a esta altura, estão com a cabeça na eleição de outubro. A ofensa, evidentemente, consiste no deslavado cinismo com que o presidente da República escarnece da lei. A última tirada sua é que "todo homem público faz campanha da hora que acorda à hora em que dorme, 365 dias por ano". A única exceção, evidentemente, é ele, que não está em campanha, mas apenas tirando proveito do monopólio de interlocução com o eleitorado que a inadvertência de seus adversários lhe outorgou. Desfilando a nudez de uma candidatura que um acintoso cálculo de conveniências o induziu a não assumir "até os 45 minutos do segundo tempo", ele fala o que quer (sem o risco de ouvir o que não quer), quando quer, onde quer e para quem quer, graças às formidáveis facilidades inerentes à sua condição de chefe do governo - inclusive um luxuoso Airbus de US$ 56 milhões. E esse monólogo a mídia não pode deixar de noticiar, com o destaque devido à função institucional do personagem. Na incursão ao Nordeste desta semana, ele soltou a franga, como lhe aprazaria dizer. Numa variante do já insuportável "nunca antes", afirmou, entre outras bravatas, que "desde o dia em que o Brasil foi descoberto" nenhum governo "cuidou mais dos pobres da Bahia do que nós".
E o que fazem, enquanto isso, os protagonistas no palco da oposição? Constrangem o distinto público com os seus repastos en petit comitê, numa ostentação anacrônica do que se costumava chamar política de campanário - o conchavo dos poucos e bons - e com o vaivém incessante de suas declarações cada vez menos vaporosas sobre como e quando será sagrado o seu anti-Lula. As divisões e trapalhadas tucanas produzem dois efeitos perversos para as suas próprias aspirações e se traduzem em pontos para Lula nas pesquisas. Um, como já se viu, é o de deixar o presidente-candidato, incomparavelmente mais candidato do que presidente, falando sozinho, gabando-se sozinho e ocupando sozinho o espaço político nos meios de comunicação de massa. Outro, tão ou mais grave, é o de passar uma imagem de falta de senso de direção e de excesso de ambição - um descaso com o eleitor que depõe contra o partido, seus líderes e seus protocandidatos. A aparente reabilitação de Lula captada pelo Datafolha junto aos entrevistados de classe média decerto decorre disso.
Mas, a oito meses do pleito, as pesquisas antes apontam para o terreno movediço das intenções do que para um desfecho inexorável. Tendências eleitorais ganham consistência, mantendo ou mudando o cenário original, só depois de iniciada a propaganda na mídia eletrônica, em agosto. O desafio dos candidatos está em se mostrarem competitivos antes disso - outra razão para o PSDB se compenetrar de que a sua questão primeira é a da urgência extrema em se definir. A partir de então, já não sem tempo, haverá um nome credenciado a expor a grande verdade que o lulismo poupado do contraditório escamoteia: o mérito singular do atual governo foi continuar o que o anterior vinha fazendo de bom. E a palavra que Lula mais teme - mensalão - será enfim ouvida até pelos mais alheios dos 120 milhões de eleitores brasileiros.