Mania de grandeza
Gaudêncio Torquato
Atribui-se ao ex-governador da Paraíba João Agripino o mote da autoglorificação: "Deus estava com mania de grandeza quando me criou." Já se sabe que Deus teve o mesmo cacoete quando criou Lula, o nosso mandatário-mor. É raro o dia em que deixa de narrar peripécias e mirabolâncias como a da semana passada, quando proclamou que, "desde o dia em que o Brasil foi descoberto", ninguém cuidou mais dos pobres da Bahia do que ele. O que agora se evidencia é que Deus teve a mesma vontade esquisita quando criou os tucanos, aves de grandes bicos que emprestam plumagem e cores para encorpar e enfeitar os ovíparos políticos dos trópicos brasileiros. Há, porém, uma diferença entre Lula e os tucanos: a precedência no calendário divino. Deus criou os tucanos no quinto dia, para voarem sobre a terra e debaixo do firmamento do céu, enquanto o nosso Adão só veio aparecer no sexto. Mas isso não é desvantagem para Lula. O primeiro homem lembra todo o tempo que foi criado à imagem e semelhança de Deus para salvar o povo brasileiro e, vejam a vingança, dominar os peixes do mar, as aves (principalmente os tucanos) e todos os animais que se movem sobre a terra.
Nem bem começou a campanha que se prenuncia como a mais acirrada da contemporaneidade e já vemos estocadas recíprocas das primeiras criaturas criadas pelo Senhor Deus dos Exércitos. Uma guerra de gigantes se avizinha. E, como se não bastasse a hecatombe eleitoral, a luta já começou no seio da própria família tucana, em que a mania de grandeza faz cátedra. Não é que colocaram para capitanear a escolha da ave que desferirá bicadas em Adão três tucanos que, apesar de ostentarem os maiores bicos da floresta, não representam as instâncias partidárias? Será que Fernando Henrique não percebe que Lula, ao erguer os braços aos céus, na quarta-feira, na praia de Lagoa Doce, no Piauí, agradecia ao Todo-Poderoso pelo fato de ele ter concedido a graça de colocar o ex-presidente da República na praça de guerra que começa a se formar? O motivo? Ora, na campanha Luiz Inácio fará uma comparação entre os dois governos. Desfilará um rosário de números para mostrar a excelência de sua administração e apontar resultados mais expressivos que os 8 anos de Fernando Henrique. Lula não baterá em Serra ou Alckmin, mas no ex-presidente. Por isso mesmo, FHC, cuja rejeição é alta nas pesquisas de opinião, erra quando quer comandar a escolha do candidato tucano. Deveria ficar longe da contenda, pois, aí permanecendo, vai ajudar Adão a concretizar o sonho de fazer um churrasco com tucanos arborícolas, servindo, primeiro, o maior deles, de sobrenome Cardoso.
Este é o primeiro flagrante dos preparativos para o jogo eleitoral ao qual poderá também se atribuir o nome de "carnaval de grandezas", na esteira da folia de Momo que começa. Da parte de Sua Excelência, a divindade presidencial, as grandezas sairão do estoque da afamada bufonaria - "maior programa do mundo, melhor idéia, pela primeira vez na história". Da floresta tucana, o trinado terá o tom da presunção. Seja quem for o candidato, Serra ou Alckmin, o discurso será a alta qualificação dos governos tucanos. Veremos um duelo em torno de projetos estupendos. O perfil anti-Lula por excelência é José Serra, que beijou a lona em 2002. Dele se pode esperar um relato das experiências bem-sucedidas na vida pública, com ênfase no êxito alcançado como ministro da Saúde de Fernando Henrique, quando patrocinou os remédios genéricos e implementou o programa de combate à aids, de fama internacional. Assim, estarão em julgamento duas administrações, a atual e a anterior, exatamente como Lula pretende.
Essa estratégia discursiva servirá mais para consolidar o voto incrustado nos dois lados e menos para agregar novos bolsões eleitorais. Lula será favorecido pelo sentimento social de que não valerá trocar seis por meia dúzia. Porém será atingido pela denúncia de que a maior roubalheira da política ocorreu em seu governo. Esse é o ponto nebuloso. Hoje tudo parece esquecido, como se uma borracha apagasse o passado. Resgatar o mensalão pegará Lula? Ou será que continuará a se desviar pelo alto, pairando acima do PT? Se o candidato for Geraldo Alckmin, o discurso será a boa administração, sob o fundo da imagem de Mário Covas, de quem o governador se considera herdeiro. Mesmo com Alckmin e todo o esforço que faria para exibir um diferencial, será difícil apagar a impressão de que estarão sendo avaliados, na campanha, os ciclos FHC e Lula. Que nome de respeito, de alta credibilidade, asséptico, com visão clara das demandas sociais e programas objetivos para o País poderia ser a terceira via? Em um ou outro dos atuais pré-candidatos - Anthony Garotinho e Germano Rigotto (PMDB), Heloisa Helena (PSOL), Roberto Freire (PPS) e Jefferson Peres (PDT) - se identificam valores respeitáveis, mas não dispõem de meios e recursos para levar a bom termo uma campanha presidencial.
O jogo está apenas começando, mas a impressão é a de que o último pênalti será batido por Lula, que terá a bola (leia-se também a caneta) na mão. Claro, se escapar da falta cometida no meio do campo do mensalão. No mais, não há como deixar de reconhecer que crescem nesta paisagem sem muita vegetação sementes de intensa fadiga social. A expansão da fulanização aponta para a triste realidade: o País continua a ser um deserto de idéias. Políticos, candidatos, pré-candidatos, governantes se apequenam. Quem se distingue no mapa nacional? Onde está o projeto Brasil? As entranhas nacionais se enchem da sensação de falência da política. Economia estável, real forte, inflação controlada, índices expressivos na balança comercial parecem miragens que não tocam a alma nacional. A percepção é a de que o País precisa mudar de faixa, ultrapassar esses tempos de grandezas pré-fabricadas com a argamassa de egos amaciados. A angústia cresce diante da evidência de que os fantasmas dificilmente fugirão de nossas mentes.