O princípio da licitação e da concorrência pública constitui regra ético-jurídica fundamental, que tem como propósito, primeiro, obter o melhor serviço ao menor custo de dinheiro público e, segundo, dar igualdade de oportunidades - vale dizer, coibir favorecimentos, com base em compadrio, afinidade política, corporativa e assemelhados - a todos os que pretendam prestar serviços à administração pública. Muito antes de chegar ao emblemático programa "tapa-buracos" nas estradas, que, certamente, ficará nos anais da administração federal como um dos marcos do desrespeito ao princípio concorrencial, ao substituir um brutal descaso (de três anos) por uma situação "emergencial" - pretexto para uma deslavada operação eleitoreira -, o governo Lula já demonstrava, em seu início, a quebra do princípio da licitação, no campo da exploração dos serviços de saúde prestados a servidores de inúmeros setores da administração pública federal, por meio da empresa privada (que recebe recursos públicos) Geap-Fundação de Seguridade Social.
Essa fundação, dirigida por sindicalistas ligados ao PT e ao PC do B, tem exercido um verdadeiro monopólio em relação aos planos de saúde de vários setores administrativos federais. Em fevereiro de 2004, o então ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, reunira-se com dirigentes da Geap, para redigir um decreto presidencial que sacramentasse, legalmente, o monopólio dos planos de saúde do setor público. Denúncias de favorecimento - vindas da oposição e da imprensa - fizeram o presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltar atrás e baixar outro decreto, revogando o primeiro. Mais recentemente, o Tribunal de Contas da União (TCU) negou o recurso da Geap, contra decisão que tomara em abril de 2004, proibindo a operadora de renovar - sem licitação - a maioria dos 33 convênios que mantém com órgãos públicos para a assistência médica de seus servidores.
Teria sido de comemorar essa decisão, mesmo que a proibição de renovação de muitos convênios, que estão prestes a vencer, fosse considerada por interessados uma "ameaça de deixar sem plano de saúde 120 mil pessoas, entre servidores e seus dependentes". Bem é de ver, aliás, que situações emergenciais, sejam planos de saúde quase vencidos ou estradas arquiesburacadas, são sempre pretexto para suspender-se a boa regra da concorrência pública. A decisão do TCU deixava livres para renovação, com a Geap, apenas os quatro patrocinadores originais, que são o Ministério da Saúde (MS), o Ministério da Previdência Social (MPS), o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e a Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social (Dataprev) - deixando de fora, pois, 29 outros. Essa decisão atingia a Geap especialmente porque as operadoras da modalidade de autogestão não podem participar de licitações, como determina a legislação. Há casos semelhantes, como os de outras operadoras de autogestão que firmaram convênios e não contratos, como a Fundação Nacional de Saúde (Capesesp), o Incra (Fasincra), a Fiocruz (Fioprev) e o Ministério da Fazenda (Assefaz).
Mas o governo encontrou a solução do problema (para variar) com a introdução sub-reptícia de um dispositivo em Medida Provisória - no caso a MP 272, já aprovada na Câmara dos Deputados e esperando deliberação no Senado. Essa MP altera o artigo 230 da Lei 8.112/90, permitindo que a prestação de assistência à saúde dos servidores possa ser feita por meio de ressarcimento parcial do valor pago na contratação do plano de saúde (um tipo de auxílio-saúde) ou por contrato ou convênio, inclusive os celebrados com entidades que possuam autorização de funcionamento na modalidade autogestão, ou, ainda, que tenham como principal atividade a prestação de assistência à saúde dos servidores.
Volta-se, então, ao problema da quebra de ética inicial, reabrindo-se a possibilidade de "aparelhamento" da máquina administrativa federal. Eficácia da concorrência à parte, no campo da qualidade da prestação de serviço de saúde a funcionários públicos federais, há que se observar que, no geral, o governo petista substituiu quase todos os princípios ético-jurídicos da administração por aquele outro até de origem bíblica, que reza: "Mateus, primeiro os meus!"