Entrevista:O Estado inteligente

domingo, fevereiro 19, 2006

Mailson da Nóbrega Aggiornamento

ESTADÃO


A palavra italiana aggiornamento significa tanto adiamento quanto atualização, modernização. Foi utilizada durante o Concílio Vaticano II (1962-1965) para representar o espírito de mudança que ali predominava. Também explicava o esforço da Igreja para ler os sinais dos tempos e aprender com as mudanças do mundo.

Nos anos 1980, essa acepção extravasou a religião para traduzir as transformações na parte da esquerda européia que percebia a inviabilidade do socialismo real e aceitava a economia de mercado e a democracia como valores fundamentais das sociedades modernas. A mudança mental foi acelerada com a queda do Muro de Berlim.

Na América Latina, o aggiornamento chegou ao Chile, mas deu passos tímidos nos demais países. A maturidade da esquerda chilena evitou que o exaurido regime militar desse lugar ao populismo inconseqüente ou às visões estatistas daqueles formados na velha tradição intervencionista da Cepal.

O mesmo não ocorreu nem no Brasil nem na Argentina, como provam, respectivamente, a Constituição de 1988 e a sobrevivência do peronismo.

No Brasil, o aggiornamento está ainda por acontecer na maioria dos grupos políticos. São os casos do PT (com as exceções notáveis de Lula, Palocci, Paulo Bernardo, entre outros) e do PMDB, como se vê das críticas dos petistas à política econômica e da proposta sob discussão entre os peemedebistas, baseada em texto de Carlos Lessa, a qual contém esquisitices como a extinção do superávit primário e a crítica às reformas da Constituição de 1988.

O PSDB está dividido. Sua principal figura, Fernando Henrique Cardoso, é um ótimo exemplo de aggiornamento. Percebeu os sinais dos tempos e mudou. Em seu livro de memórias publicado recentemente nos Estados Unidos, ele conta uma conversa com Lula após as eleições de 1998. Conforme diz Paulo Sotero (O Estado, 12/2/2006), FHC confiava na sua política econômica. Mas Lula representava, para mim, um segmento da população que eu não tinha sido capaz de conquistar (..e cujas) crenças eu havia compartilhado no passado. Por que eles não haviam chegado às mesmas conclusões que eu?.

Na verdade, FHC tampouco conquistou uma parcela de seu próprio partido. É conhecida a divergência de visões no PSDB. Uma parte acredita na economia orientada pelo mercado e mostrou que se convenceu de que o Estado do exausto nacional-desenvolvimentismo deve dar lugar a um Estado igualmente forte, mas não para exercitar políticas dirigistas, eleger vencedores e transferir renda para certos eleitos.

O novo Estado deverá ser capaz de criar a estrutura de incentivos para encorajar os empreendedores a investir, inovar e prosperar em mercados competitivos.

A outra parte do PSDB criticava a política econômica de Fernando Henrique Cardoso e tem uma visão distinta de Estado, que para ela precisa ser proativo. O Banco Central deve ser parte da estratégia de desenvolvimento, o que implica receber orientação sobre o nível da taxa de juros. O Ministério do Desenvolvimento deve participar da fixação da taxa de câmbio. Membros do grupo criaram uma teoria fora do comum, a de que quem defende a economia de mercado prega também a irrelevância do Estado.

Na realidade, os que acreditam que o desenvolvimento passa pelo sistema capitalista, entre os quais me incluo, jamais poderiam desejar a perda de importância do Estado. De fato, o sistema não teria dado certo sem as mudanças institucionais iniciadas no século 17, que permitiram o fortalecimento do Estado-nação, com poderes para assegurar a estabilidade macroeconômica, o direito de propriedade, o respeito aos contratos e a regulação inibidora das assimetrias de informação e do domínio dos mercados.

O êxito do sistema capitalista dependeu também dos avanços na educação e da evolução nos campos da ciência e da tecnologia, que contribuíram para viabilizar ganhos permanentes de produtividade e para a elevação do potencial de crescimento das respectivas economias.

É aqui onde cabe o Estado proativo, o que abrangeria ações para garantir, direta ou indiretamente, o provimento de serviços de infra-estrutura.

Caberia indagar por que FHC preferiu o primeiro grupo para formular o Plano Real e conduzir a política econômica nos seus dois mandatos, fazendo ouvidos moucos às outras propostas. Mero acaso? Intuição? Sagacidade? Conseqüência do aggiornamento? O leitor melhor dirá.

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