tornou esperança
Duas décadas após o desastre de Chernobyl, a
energia nuclear está novamente em expansão para
enfrentar o preço do petróleo e o aquecimento global
Rafael Corrêa e Paula Neiva
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Há duas décadas, a devastadora explosão de um dos reatores da usina nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, chocou o mundo e alterou a percepção dos governos e da opinião pública sobre a energia produzida pelo urânio. O acidente espalhou toneladas de material radioativo por uma área de 150 000 quilômetros quadrados e matou nas primeiras semanas três dezenas de pessoas. Segundo um levantamento da Organização Mundial de Saúde, devido às pessoas que morreram nos anos seguintes em razão de doenças relacionadas à radiação, o total de vítimas pode chegar a milhares. Diante desse horror, vários países, como a Inglaterra e a Alemanha, resolveram desativar gradativamente suas usinas nucleares. Na Itália, a decisão veio por consulta popular. Os Estados Unidos já haviam interrompido a construção de novos reatores desde 1979, quando ocorreu um superaquecimento do reator de Three Mile Island. A novidade é que a roda da história voltou a girar a favor da energia nuclear. O que até pouco tempo atrás era visto como uma tecnologia sinistra passou a ser encarado, em muitos países, como uma esperança de energia limpa e barata. Hoje, 35 usinas estão sendo construídas em vários países e outras 93 deverão ser erguidas nos próximos anos – mais da metade delas na Ásia.
Nos Estados Unidos, os dois candidatos à Presidência, Barack Obama e John McCain, já anunciaram que são favoráveis à multiplicação das usinas no país. O governo da Inglaterra divulgou que pretende fazer o mesmo. A Itália, único país do G8 que não produz energia nuclear, embora a importe, informou há dois meses que vai construir usinas. O Brasil, por sua vez, acaba de comunicar a retomada da construção de Angra III, no litoral do Rio de Janeiro (veja o quadro). Ao longo de quinze anos, até o acidente de Chernobyl, em 1986, a parcela da eletricidade produzida no planeta vinda da energia nuclear saltou de 2% para 16% – patamar que se mantém ainda hoje. Calcula-se que em 2050 essa proporção suba para 22%. Trata-se da maior expansão do parque nuclear mundial desde a década de 70.
Fonte: IEA |
O renascimento da energia nuclear é explicado por uma conjunção de fatores. O primeiro é econômico. A disparada do preço do petróleo e do gás natural, que juntos respondem por 25% da eletricidade produzida no planeta, torna cada vez mais cara a energia obtida desses combustíveis fósseis. O quilowatt/hora gerado com petróleo e gás dobrou de preço desde 1995. Em contrapartida, a energia produzida por usinas nucleares, beneficiadas por tecnologias que aumentaram a produtividade, ficou mais barata. Para comparar: o custo da eletricidade gerada com petróleo é hoje seis vezes superior ao da nuclear. As termelétricas a carvão, que produzem 40% da eletricidade do mundo, continuam a ser construídas a todo o vapor, principalmente na Rússia e na China. O custo da energia produzida com carvão permanece equilibrado há uma década – mas, mesmo nesse caso, o átomo pesa menos no bolso.
O segundo fator que impulsiona o renascimento da energia nuclear é o combate ao aquecimento global, uma causa que mobiliza governos e opinião pública. Uma termelétrica que usa matérias-primas fósseis emite 1 quilo de dióxido de carbono (CO2), o principal gás do efeito estufa, por quilowatt/hora gerado. Uma usina nuclear emite apenas 30 gramas de CO2 para produzir a mesma quantidade de energia – mesmo assim, entram nessa conta apenas fatores externos ao funcionamento do reator, como transporte de matéria-prima. "A energia nuclear tinha má fama, mas o cenário mudou drasticamente com o aumento de preços dos combustíveis fósseis e a preocupação com o aquecimento global", disse a VEJA o alemão Hans-Holger Rogner, coordenador de estudos econômicos da Agência Internacional de Energia Atômica. Além da questão do custo das matérias-primas e da preocupação verde, o renascimento da energia nuclear é impulsionado por questões geopolíticas. Na visão de muitos governantes dos países democráticos, as usinas nucleares são uma maneira de diminuir a dependência em relação ao petróleo e ao gás natural, cujas maiores jazidas se encontram em mãos de governos que merecem pouca confiança, como Rússia, Líbia, Irã e Venezuela. Ignorar o potencial da energia nuclear equivaleria a se deixar indefinidamente à mercê de ditadores e governantes imprevisíveis.
Lee Jin-Man/AP |
Lixo atômico estocado na Coréia do Sul: à espera de uma solução para o descarte |
Na matemática do aquecimento global, um aumento expressivo no número de termelétricas significa um futuro ainda mais quente para a humanidade. Por isso, até mesmo ambientalistas, antes agressivos opositores da energia nuclear, passaram a defendê-la como alternativa aos combustíveis fósseis. O inglês James Lovelock, autor da teoria de que a Terra é um enorme organismo vivo capaz de regular a si mesmo, defende as usinas nucleares como a melhor alternativa para produzir energia sem poluir o ambiente. O apelo de Lovelock é engrossado por Patrick Moore, fundador da organização ambiental Greenpeace, sempre pronta a fazer protestos ruidosos contra a energia do átomo. Segundo dados da Agência Internacional de Energia, o planeta pode precisar de 1 300 novos reatores nuclea-res até 2050 para combater o aquecimento global e atender ao aumento da demanda energética. Além disso, será preciso fazer um investimento maciço em fontes de energia renováveis, como eólica e solar. Por enquanto, a eletricidade produzida pelas fontes renováveis é muito cara e insuficiente para atender a regiões de alto consumo.
Fonte: WNA |
Apesar da adesão de ambientalistas ilustres à causa nuclear, muitos integrantes da tropa que rejeita as usinas continuam em ação. No início deste mês, quando o governo francês anunciou a ocorrência de um vazamento de material radioativo em dois rios próximos à usina de Tricastin, na região de Avignon, organizações como a Sortir du Nucléaire fizeram protestos e voltaram a criticar o fato de que quase 80% da eletricidade consumida no país vem da energia nuclear. A avaliação de que as usinas nucleares são perigosas é basicamente um mito. Assim como a quantidade de desastres aéreos é pequena diante do número de vôos realizados no mundo diariamente, a quantidade de vítimas fatais de acidentes em reatores é ínfima perto de seu volume de produção. Desde que as primeiras usinas entraram em funcionamento, nos anos 50, estima-se que 9 000 pessoas tenham morrido em decorrência de acidentes com reatores nucleares, a maioria em Chernobyl. É o mesmo número de pessoas que morrem todo ano por inalar ar poluí-do decorrente da queima de carvão. Mesmo os reatores mais antigos ainda em operação passam por reformas que os tornam mais seguros. A indústria da energia nuclear aprendeu a lição de Chernobyl e investiu pesado para diminuir a ocorrência de acidentes. Sistemas e sensores analógicos foram substituídos por controles digitais e computadorizados. Os dispositivos de segurança foram duplicados e até quadruplicados para criar um efeito de redundância – se um deles falha, outro é acionado. Parte dos rea-tores hoje em construção no mundo, assim como os 93 planejados, pertence a uma nova geração de máquinas dez vezes mais seguras (veja o quadro).
A rigor, o único problema das usinas nucleares é o que fazer com o lixo atômico que produzem. Até agora não se tem uma solução prática para os rejeitos radioativos que não seja o armazenamento, o que ainda deixa boa parte da opinião pública desconfiada com a nova escalada na construção de reatores. A maioria das usinas é projetada com prédios anexos capazes de armazenar o lixo radioativo produzido durante toda a sua vida útil. Os rejeitos são colocados em cilindros blindados e estocados em locais refrigerados ou em piscinas cuja água é mantida gelada. Mesmo depois de usados no reator, os rejeitos ainda liberam calor e outras formas de radiação que podem acabar corroendo o metal dos cilindros de armazenamento. Uma das saídas é estocar o lixo atômico em depósitos subterrâneos, como o de Onkalo, na Finlândia, e o de Yucca Mountain, nos Estados Unidos. Há esperança de que, no futuro, se descubra uma forma mais eficiente de descartar esse material ou reutilizá-lo. De qualquer maneira, pela determinação com que os governos vêm se voltando para a energia nuclear e investindo em novas usinas, é certo que nas próximas décadas se viverá uma nova era atômica.
O Brasil agora está com pressa
No Brasil, a energia nuclear passou a ser vista com desconfiança não só por causa do acidente de Chernobyl, mas também pelos desacertos do governo militar. Nos anos 70, o plano era construir nove usinas nucleares, fazendo com que esse tipo de energia respondesse por 15% da produção de eletricidade até o fim da década seguinte. Apenas Angra I foi concluí-da nesse período. Entrou em operação em 1985, catorze anos depois do início da construção, que demorou duas vezes o previsto. Custou 2,5 bilhões de dólares, ou 3 800 dólares por quilowatt instalado – praticamente o dobro do valor aceitável internacionalmente –, e teve de ser desligada tantas vezes que ganhou o apelido de vaga-lume. Ainda nos anos 80, o Brasil percebeu que os dois geradores a vapor da usina haviam sido produzidos com um material cuja vida útil é inferior aos trinta anos prometidos e entrou na Justiça contra o fabricante, a Westinghouse – mas perdeu. Resultado: desde 2003, a usina funciona com 80% de sua capacidade. No início do ano que vem, ou seja, seis anos antes do previsto, Angra I terá de trocar os geradores, ao custo de 280 milhões de reais.
O programa nuclear foi esquecido com o fim do milagre econômico. Somente em 1996 o então presidente Fernando Henrique Cardoso decidiu levar adiante a obra inacabada de Angra II. A usina começou a operar em 2001, no ano do apagão que acordou o Brasil para a necessidade de planejamento energético. O país está sendo obrigado a correr atrás do tempo perdido. Para escapar de um novo apagão dentro de cinco anos, tem de aumentar a capacidade instalada em 20 000 megawatts, o que significa uma expansão de 20%. Até 2030, precisa mais do que dobrá-la. Embora a energia nuclear não seja uma alternativa para tampar o buraco imediato, é um dos caminhos mais promissores a médio e longo prazo. Pelas mesmas razões que estão levando o mundo a fazer essa opção e por mais uma: o Brasil dispõe da sexta maior jazida de urânio do mundo. O país também tem tecnologia própria, e uma das mais modernas, para enriquecer seu urânio. "Temos de agir imediatamente. Estamos no limiar de perder nossa mão-de-obra capacitada no setor nuclear por falta de investimento nessa área", diz Maurício Tolmasquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética.
O Plano Nacional de Energia estipula que até 2030 a geração nuclear tem de dobrar. Para tanto, é preciso concluir Angra III, além de construir outras quatro usinas com potência de 1 000 megawatts cada. Seria o suficiente para fazer com que o setor, que hoje responde por 2% da matriz elétrica, passasse a responder por 5%. A conclusão de Angra III foi aprovada pelo governo no meio do ano passado. Já poderia ter saído do papel, mas ainda necessita de uma licença do Ibama e outra da Comissão Nacional de Energia Nuclear. O ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, que é contra o projeto, afirma que não vai barrar a licença. Mas condicionou a liberação da obra a compensações ambientais que vão além das que estão previstas em lei. É o primeiro passo para a criação de uma zona cinzenta que colocaria Angra III de volta na gaveta. Por enquanto, o início das obras está marcado para o dia 1º de setembro. O Brasil já gastou nessa usina 1,5 bilhão de reais. Para que ela fique pronta em 2014, serão necessários mais 7,3 bilhões de reais e muita determinação política, porque, além dos entraves ambientais, Angra III tem a oposição de parte da comunidade científica. Os críticos dizem que é melhor esperar a nova geração de usinas, mais seguras e menores. Angra III não é considerada, nem pelos opositores mais ferrenhos, uma usina ultrapassada. O maquinário pesado, que já está comprado, é o mesmo utilizado na maior parte das usinas em operação no mundo. Em relação ao preço, um estudo feito pela consultoria suíça Colenco no ano passado mostra que, se o país jogasse fora os equipamentos já adquiridos para Angra III e optasse pela construção de uma usina partindo do zero, gastaria entre 13% e 33% a mais. Seria também impossível concluir um projeto novo antes de 2018. O Brasil precisa de mais energia antes disso.
Marcelo Bortoloti |
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